Destacados dirigentes culturais alemães denunciam «caça às bruxas» a pretexto do anti-semitismo
Numa conferência de imprensa em Berlim, na passada quinta-feira, os directores de 32 das mais prestigiadas instituições culturais alemãs divulgaram uma declaração na qual se pronunciam contra a resolução do Bundestag sobre o anti-semitismo e alertam que «as acusações de anti-semitismo estão a ser mal utilizadas para afastar vozes importantes e para distorcer posições críticas».
Sintomático do clima que se vive no meio cultural alemão é que a conferência de imprensa foi planeada clandestinamente e culminou um ano de reuniões mensais realizadas em absoluto sigilo. Em causa estão, no entender dos participantes, a democracia alemã e a liberdade de expressão artística e académica.
Na origem do movimento está uma resolução aprovada pelo Parlamento alemão, em Maio de 2019, que designava a campanha de sanções a Israel BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções) como anti-semita. A resolução não vinculativa exorta todos os estados e municípios da Alemanha «a não apoiar financeiramente quaisquer projectos que apelem ao boicote de Israel ou apoiem activamente a campanha BDS».
Apesar do largo consenso parlamentar, houve logo quem se apercebesse dos riscos da resolução. Cerca de 100 membros do Bundestag, que a tinham apoiado, emitiram declarações pessoais expressando a preocupação de que ela colidisse com a liberdade de expressão e afectasse a capacidade das pessoas para criticar a política de Israel.
A situação ganhou maior expressão pública na sequência de um escândalo nacional em torno do cancelamento da participação do proeminente filósofo camaronês Achille Mbembe no Festival da Trienal do Ruhr, no início deste ano.
A decisão de retirar Mbembe do festival surgiu após uma pressão sustentada liderada por políticos e meios de comunicação alemães que se concentraram em escritos de Mbembe de há dez anos, tomados fora de contexto, para construir uma acusação de anti-semitismo, veiculada pelo comissário alemão para o anti-semitismo, Felix Klein, e alimentada pelo presidente do Conselho Central dos Judeus na Alemanha, Josef Schuster. A posição da directora do Festival, Stefanie Carp, está em risco.
«É improdutivo, mesmo prejudicial para a esfera pública democrática, excluir vozes vitais do diálogo crítico, como ocorreu no debate em torno de Achille Mbembe no início deste ano», dizem os signatários na declaração. «A responsabilidade histórica da Alemanha não deve conduzir a uma deslegitimação geral de outras experiências históricas de violência e opressão, nem moral nem politicamente.»
Prossegue a declaração: «Rejeitamos o boicote BDS a Israel, uma vez que consideramos o intercâmbio cultural e científico como essencial. Ao mesmo tempo, consideramos perigosa a lógica do contra-boicote, desencadeado pela resolução parlamentar anti-BDS.»
Num extenso artigo publicado no diário israelita Haaretz, entrevistas realizadas com uma série de intelectuais, académicos, jornalistas, artistas, políticos e directores de instituições culturais indicam a profundidade da influência que a resolução do Bundestag tem tido em todas as áreas da sociedade civil alemã.
O clima que ali se vive está bem retratado na entrevista de Stefanie Carp ao Haaretz: «Os colegas têm medo de serem vistos comigo, de estarem perto de mim», diz ela. «Algumas pessoas disseram que se eu estivesse num palco, não quereriam estar lá comigo — não porque realmente pensem que sou anti-semita, mas porque temem pelas suas próprias carreiras. Até mesmo colegas que conheço muito bem.»
Os críticos da resolução do Bundestag questionam-se se a extensão do conceito de anti-semitismo para englobar as críticas a Israel não está de facto a afectar negativamente a batalha contra o próprio anti-semitismo.
Foi essa preocupação que académicos israelitas e alemães expressaram numa carta aberta à chanceler alemã Angela Merkel em Julho passado. Lamentaram «o uso inflacionário, factual e juridicamente infundado do conceito de anti-semitismo», e sustentaram que isso «desvia a atenção dos verdadeiros sentimentos anti-semitas... que na realidade põem em perigo a vida dos Judeus na Alemanha». A crítica é dirigida principalmente a Felix Klein, o comissário alemão para o anti-semitismo.
O New York Times, que também aborda o assunto, mostra que ninguém escapa à fúria censória na Alemanha.
Yehudit Yinhar, uma estudante israelita judia da Academia de Arte Weissensee, criou, com outros colegas, o projecto «Escola para Desaprender o Sionismo», que consistia em palestras online e discussões públicas para explorar «perspectivas fora da linguagem do poder», que eram aprendidas ao crescer em Israel.
O projecto foi acusado de anti-semitismo e a Academia encerrou o website do grupo. «Nenhum dinheiro dos contribuintes deve ser utilizado para deslegitimar Israel», disse o Comité Judaico Americano Berlim numa declaração no Twitter, fazendo notar que a Academia de Arte Weissensee é financiada publicamente.
Subjacente a todo o debate sobre o anti-semitismo está a adopção acrítica que se está a fazer da definição da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), porque ela define enganosamente muitas críticas legítimas a Israel como anti-semitas e pode ser utilizada para coarctar a liberdade de expressão.
Sobre este assunto, sugerimos a leitura destes textos divulgados pelo MPPM:
- «Os direitos palestinos e a definição de anti-semitismo da IHRA» - carta aberta de académicos, jornalistas e intelectuais palestinos e árabes
- «Em Israel, as três dimensões de uma deriva fascizante», um artigo de Dominique Vidal
- Trinta e quatro intelectuais israelitas dizem à Europa: não confundam críticas a Israel com anti-semitismo
- MPPM protesta contra perseguição à solidariedade com a causa palestina