«Voluntários católicos na Palestina testemunham»
Entrevista de Anne-Laure Le Gall a Corinne e Laurent Mérer publicada no Paris Match em 4 de Janeiro de 2018
«A colonização na Palestina é um cancro que desenvolve diariamente as suas metástases»: é esta a conclusão extremamente forte de Corinne e Laurent Mérer, dois voluntários católicos que passaram três meses nos Territórios Ocupados.
Na Primavera de 2016, Corinne e Laurent Mérer passaram três meses nos Territórios Ocupados respondendo ao apelo das igrejas cristãs da Palestina. Este antigo almirante e a sua esposa não estão particularmente sensibilizados para a questão israelo-palestina. Vão partilhar no dia-a-dia a vida dos cristãos e muçulmanos, nos locais sensíveis da Margem Ocidental, checkpoints, aldeias beduínas, perto dos colonatos, segundo o princípio da presença protectora. O que descobrem no terreno deixa-os siderados: perseguição, expedições punitivas, humilhações diárias pelos colonos e pelos soldados das forças armadas de Israel, cobertos pelas autoridades.
Publicam a história da sua missão no livro S’ils se taisent, les pierres crieront [Se eles se calarem, as pedras gritarão] (ed. Balland).
Paris Match — O que o decidiu a partir para a Margem Ocidental com a sua esposa?
Laurent Mérer — Já em 2002, na sequência da segunda intifada, o conjunto das Igrejas cristãs da Palestina reuniram-se para lançar, em nome de todos os palestinos, cristãos e muçulmanos, um apelo aos homens e mulheres de boa vontade: «venham, compartilhem um momento da nossa vida e testemunhem o que vejam»; o apelo é renovado todos os anos. Seduziu-nos esta abordagem ecuménica, no sentido largo do termo, de uma questão eminentemente complexa.
Pode recordar-nos o quadro desta missão?
A resposta a este pedido foi formalizada por um programa montado pelo Conselho Ecuménico das Igrejas (programa EAPPI: Ecumenical Acompaniement Program for Palestine and Israel), que consiste no envio regular, durante três meses, de um contingente de trinta voluntários internacionais para os Territórios Ocupados da Palestina. Aí chegados, os voluntários são repartidos por equipas de 4 a 5 que vivem em autonomia em lugares sensíveis (Jerusalém Oriental, Hebron, colinas do sul de Hebron, Belém, Jericó/vale do Jordão, Yanoun, Tulkarem) e trabalham concretamente no terreno, segundo o princípio da «presença protectora», para facilitar o acesso dos palestinos ao trabalho (presença nos checkpoints), à educação (entrada das escolas), aos lugares de culto (igrejas e mesquitas), para estarem presentes junto dos beduínos e dos pastores cujos terrenos e pastagens são cobiçados pelos colonos, para apoiar as famílias cujas casas são alvo de demolições punitivas ou foram emparedadas, aquelas cujos filhos foram feridos ou estão presos. Este trabalho faz-se no quotidiano em relação com as organizações israelitas e palestinas que militam por uma paz justa e as grandes organizações internacionais.
O que vos marcou mais? Chocou? Revoltou?
A cegueira, o ódio… Pensava-se que a colonização fosse coisa do passado, mas na Palestina ela é uma realidade viva e activa, um cancro que desenvolve diariamente as suas metástases. Os raros colonos com quem conseguimos dialogar — a maior parte dos outros recorriam mais à invectiva e ao escarro — têm uma atitude messiânica: «Deus deu-nos esta terra, os palestinos não têm nada que cá estar, têm de se ir embora, se não atiramo-los ao mar.» Houve um ponto que nos impressionou particularmente: os palestinos cristãos, embora muito minoritários, estão especialmente na mira das autoridades israelitas. Os cristãos, por razões históricas, fazem parte da elite deste país e estiveram à frente da maior parte dos movimentos de contestação. Além disso, são o testemunho vivo de que este conflito não é um conflito de natureza religiosa judeus/muçulmanos, fácil hoje de «vender» à opinião ocidental, mas sim um conflito de território. Por isso os palestinos cristãos são, aos olhos do governo israelita, uns perturbadores que têm de ser incitados a partir, complicando-lhes ao máximo a vida diária. Esta política é um êxito, já que os cristãos, que representavam quase 20% da população, são hoje menos de 1,5%. Mesmo assim os palestinos cristãos têm um papel importante a desempenhar na solução ou na evolução do conflito. Neste quadro de desespero, há apesar de tudo um vislumbre de esperança: muitos israelitas (incluindo altos responsáveis militares ou policiais) compreendem e dizem, porque há uma grande liberdade de expressão em Israel, que a política actual de ocupação e de colonização está a conduzir o seu país a um impasse, que nunca haverá paz para Israel enquanto os palestinos não beneficiarem de uma paz justa; por enquanto não são maioritários, mas esta corrente de pensamento exprime-se regularmente.
Voltaram diferentes?
Sim, incontestavelmente. Volta-se um tanto desesperados com a condição humana. Constatar que um país moderno, internacionalmente reconhecido, suscita, incentiva ou cobre os comportamentos a que nós assistimos, que isso se faz perante a indiferença calada da comunidade internacional, tem algo de revoltante. Desesperados também por verificar que esta política, contrária ao espírito dos pioneiros, não somente faz sofrer uma parte da população desta terra, mas, a prazo, conduz Israel ao malogro. Os israelitas razoáveis e realistas têm dramaticamente consciência disso. Tivemos nesta matéria testemunhos tão impressionantes quanto dramáticos de israelitas ainda mais desesperados do que nós.
Quando regressaram, como é que as pessoas que vos rodeiam receberam o relato das vossas experiências?
Pergunta delicada… Com alguns, família ou amigos, não conseguimos evitar a controvérsia, o assunto é tão sensível, e especialmente no nosso país, tão carregado de pesos societais ou históricos. Houve reacções epidérmicas… Mas para a maioria dos que nos rodeiam, foi o espanto: o mesmo que o nosso espanto frente à realidade que vimos e vivemos. Incontestavelmente fizemos evoluir o seu modo de encarar a realidade. A nossa missão parava aí. Depois cabe a cada um fazer o seu próprio juízo.
Vão voltar?
Não, pelo menos não no imediato. Voltar a curto prazo seria correr o risco de o olhar se embotar, de se habituar ao inaceitável. Nos próximos anos a situação não se vai alterar, pode até piorar. Mais vale incitar outros a fazer o mesmo que nós, para manter o fluxo dos testemunhos, de cada vez com um olhar novo. Por agora, vamos dedicar-nos à segunda parte da missão: contar. Fazemos muitas conferências, reuniões, e há este livro.
Seguem-se três extractos do livro S’ils se taisent, les pierres crieront [Se eles se calarem, as pedras gritarão], de Corine e Laurent Mérer, ed. Balland, 15 euros.
Extracto 1 — Madrugada em Qalandia
4h30. Estamos em Qalandia, um dos mais importantes checkpoints da Margem Ocidental, mas por enquanto do «lado bom», isto é, do lado de Jerusalém, dos lugares santos, dos grandes hospitais e sobretudo do trabalho.
É para este lado que querem vir esta manhã, como todas as manhãs da semana, centenas de palestinos, cristãos e muçulmanos, que vivem nos Territórios Ocupados mas que têm o seu trabalho do outro lado. [Atravessar neste sentido] não tem nenhuma dificuldade: basta-me transpor dois torniquetes metálicos.
Chego então ao interior do vasto centro de controlo para peões que é Qalandia, do lado da Palestina: um imenso hangar de chapas torcidas ou partidas, com um chão esburacado, equipado com uns raros bancos metálicos. Um fiozinho de água corre para um antigo tanque de pedra; vários homens refrescam-se, outros fazem as suas abluções antes da oração. Ao lado, umas casas de banho degradadas. O fedor de urina e de tabaco frio sufocam-me.
Uma centena de palestinos, na sua maioria homens, já estão à espera, suportando o vento glacial que sopra por entre as chapas desconjuntadas. Vejo-os estremecer, com ar abatido, mal acordados, de mãos enfiadas nos bolsos […] Batem os pés em fila indiana diante de um dos estreitos corredores — apenas com a largura de um homem — constituídos por altas barreiras metálicas e cobertos de espessas redes, que desembocam em torniquetes […] Vem-me ao espírito a imagem do gado que desfila para o matadouro.
No tecto, por entre um emaranhado de arames farpados, voejam pássaros; em Qalandia, são os homens que vivem numa gaiola…
Extracto 2 — A escola Cordoba — Hebron na tormenta
A entrada da rua Shohada [onde se encontra a escola], anteriormente muito comercial, é filtrada desde 2000, após a segunda intifada; após os acontecimentos de Setembro de 2015 — uma jovem palestina de vinte anos, suspeita de um ataque com faca, foi morta pelos soldados no checkpoint 56 — esta rua foi declarada «zona militar fechada». Só podem entrar, após controlo e muitas vezes revista, as famílias palestinas que vivem na rua, assim como as crianças da escola Cordoba e os seus professores. Os colonos entram pelo outro lado e só eles é que podem circular de automóvel. A escola acolhe cento e cinquenta crianças palestinas dos seis aos dezasseis anos e dezasseis professores.
Com a minha equipa, colocamo-nos todos os dias nos dois checkpoints, para a entrada e para a saída das crianças. «A vossa presença tranquiliza as crianças e acalma os colonos», declara-me Nora Nazar, a corajosa directora da escola Cordoba. «E os soldados têm mais cuidado», continua. […]
Desde o aumento da tensão ocorrido no Outono de 2015 em Israel e nos Territórios Ocupados da Palestina […], é em Hebron, 250 000 habitantes, que a situação é mais crítica. De facto, dois importantes colonatos israelitas, ilegais à luz do direito internacional, com 10 000 habitantes no total, estão implantados à volta da cidade, e três pequenos no coração da cidade velha.
Os colonos tentam por todos os meios alargar os seus assentamentos, e a coabitação com os palestinos é «musculada». Os colonatos de Hebron são protegidos por três mil soldados do exército israelita. A cidade constitui um problema de primeira ordem porque, tal como Jerusalém, é uma cidade santa para as três religiões monoteístas. Contém o túmulo das Patriarcas da Bíblia, Abraão, Isaac e Jacob.
Segundo uma antiga tradição, é também a entrada do Jardim do Éden […] O rei David aí foi consagrado e aí reinou sete anos. […] Há muito que já não há cristãos em Hebron […]. Assim, palestinos muçulmanos e colonos israelitas estão frente a frente. Hoje a tensão está outra vez no auge. 40% dos confrontos ocorrem em Hebron.
As crianças da escola Cordoba continuam a baixar a cabeça.
Extracto 3 - As colinas do Sul
No Sul da Judeia, a uns vinte quilómetros de Hebron, a cidade de Yatta domina uma região de colinas dedicadas à agricultura e à pecuária que se estende até à «linha à verde», fronteira com Israel […]. Uma das nossas equipas está estabelecida em Yatta e parte daí para assegurar uma presença protectora nas aldeias sujeitas aos abusos dos colonos, acompanhar os pastores nos seus pastos, os agricultores nos seus trabalhos diários; os nossos amigos passam muitas vezes a noite nas quintas para dissuadir os ataques e as intimidações. Vim partilhar três dias com eles nas colinas do Sul. Quando nos preparámos para partir, após a cerimónia do chá na casinha de Ahmed e Sara, a jovem olhou-me com os seus olhos azuis quase transparentes e disse-me: «Volte quando quiser e passe aqui a noite.» Li a angústia no seu rosto.
Levantou-se pesadamente, com um bebé ao colo e outro quase no fim do tempo debaixo da túnica, e acompanhou-nos até à porta. Ahmed, que ia à frente, disse-nos: «De noite treme e durante o dia, quando estou fora com as ovelhas, teme por mim.» […] Na véspera, Ahmed tinha sido violentamente molestado por um colono que chegou de carro […]. «Desaparece, não tens nada que estar aqui, esta terra é nossa, foi-nos dada por Deus.» Não se brinca com os colonos, a maior parte estão armados. Ahmed tinha fugido com os seus animais.
A história de Susiya, nas colinas do Sul de Hebron, já fez correr muita tinta, mas os problemas continuam. A antiga aldeia foi arrasada em 1986 e os seus habitantes expulsos porque não podiam morar num sítio de escavações arqueológicas. Mas logo depois instalaram-se no local três famílias de colonos.
Por seu lado, as famílias palestinas mudaram-se para umas centenas de metros de distância, para terras que lhes pertenciam desde a época otomana, e a nova aldeia é hoje constituída por três grupos de tendas ou casinhas de chapa e lona, cerca de 400 pessoas, mais de um milhar de animais nos cercados. Mas foi alvo de uma ordem de demolição depois de uma associação de colonos ter feito queixa no tribunal israelita, reclamando a destruição de «todos os postos avançados palestinos da zona». A queixa foi aceite. A aldeia perdeu mais de 60% das suas terras agrícolas e dos seus pastos, porque a maior parte se encontra na «zona tampão» decretada pelas autoridades depois da instalação do grande colonato agrícola, zona de acesso proibido aos palestinos «por razão de segurança». A maior parte dos poços da aldeia se encontram nesse espaço. Postos de vigia erguidos e guardados pelo exército ocupam as colinas vizinhas. Quando me aproximei sub-repticiamente do colonato durante o tempo de pastagem, vi chegar um jipe militar em poucos minutos e tive de me escapar em direcção às ovelhas.
S’ils se taisent, les pierres crieront… trois mois en Palestine au service de la Paix [Se eles se calarem, as pedras gritarão… três meses na Palestina ao serviço da Paz], de Corine e Laurent Mérer, ed. Balland, 15 euros.
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Segunda, 15 Janeiro, 2018 - 00:00