Seminário Gaza 2009: Intervenção de Miguel Urbano Rodrigues
Boa tarde senhoras e senhores, meus amigos
Não é fácil para mim falar aqui: eu nunca estive na Palestina e não sou um especialista. Estão aqui, pelo menos, três especialistas, não é, a começar pelo Silas Cerqueira, o Pierre Galand - o velho amigo - e Michael Kingsley.
Mas eu estive recentemente no Líbano e vou falar um pouco sobre problemas globais da região.
Do Fórum Internacional em que eu participei, escrevi dois artigos que foram divulgados em Portugal, no Brasil e em várias webs - não no resto da imprensa portuguesa – em que procurei sintetizar o que vi e o que senti em Beirute. Tive oportunidade, também, de dar um salto, de estar dois dias em Damasco. Do que vi e senti, evidentemente, quase nada correspondeu àquilo que esperava. Quando nós vamos a qualquer lado temos uma ideia do que é que vai ser e foi quase tudo muito diferente.
A primeira coisa que me surpreendeu em Beirute foi que eu ia muito à procura dos vestígios, na cidade, da guerra, dos bombardeamentos bárbaros e selvagens, do que foi a agressão israelense e, por surpresa minha, verifiquei o seguinte: nos bairros a que chamaria burgueses, nos bairros ricos da cidade, dividida desde a guerra civil na zona - como sabem - zona cristã e zona muçulmana, só por engano é que caiu alguma bomba nos bairros residenciais ricos. Em compensação, a fúria da barbárie sionista caiu sobre Beirute, sobre a zona pobre da cidade e a zona onde estava a resistência, onde estavam os bastiões principais do Hezbolah. Aí, sim.
Tive oportunidade também de viajar ao sul do Líbano e à medida que se ia para sul, os vestígios, as sequelas dessa barbárie eram mais visíveis, especialmente a partir de Tiro.
O Líbano é, como vocês sabem, um alto lugar, um berço da civilização humana, um lugar onde nasceu uma das primeiras grandes revoluções da humanidade, o primeiro alfabeto fonético, no norte, em Byblos. À medida que se ia para o sul, eram muito maiores os vestígios. Em Canaan, por exemplo, a destruição, os lugares onde morreram dezenas de crianças, as campas, os retratos delas, tudo isso contribuiu para o aumento da emoção. E na fronteira sul, de onde se viam, no Líbano, cidades e aldeias de Israel e postos militares de Israel, na zona da fronteira, um pouco à direita das chamadas colinas de Golã, mas não longe da parcela da Síria que está ocupada por Israel, o contacto com as populações e ouvi-las, aí é que causava essa impressão, o não esperado, o que é diferente, que é do domínio já do sentimento.
Em primeiro lugar, havia sentimentos muito contraditórios de indignação, de revolta e ao mesmo tempo de orgulho da resistência.
Depois de tanta humilhação, havia a maneira como Israel tinha sido militarmente derrotado, como todos os planos foram a pique; na realidade, houve uma derrota militar de um exército de forças armadas que se julgavam invencíveis. Quer dizer, o mito da invencibilidade e das vitórias acumulada,s que vinham desde a partilha, acabou ali. Então havia isso.
E, por outro lado uma ideia, um grande cepticismo quando se fala da paz, quando se fala dos dois Estados, aquelas populações que sofreram a guerra de uma maneira muito directa têm uma descrença total, um desprezo por Mahmoud Abbas - vou falar com franqueza, quero transmitir aquilo que vi e o que escrevi - um desprezo total por Mahmoud Abbas , por todo esse discurso de que é possível a paz, dizendo que não acreditam porque há um convencimento generalizado, sobretudo na fronteira, de dirigentes da resistência com quem falei antes das eleições - eram duas semanas antes – dizendo que, no fundo, quer para Tzipi Livni, quer para a extrema direita israelense, o objectivo inconfessado é expulsar-nos. Não foi por acaso que Tzipi Livni disse que a minoria árabe que vive dentro do Estado de Israel deveria ir viver para a Cisjordânia, ou para outro lado, que não faz sentido que continuem a ser cidadãos de Israel, quer dizer os árabes que têm documentação israelense.
De maneira que existe essa ideia e, por outro lado, também, uma ideia muito generalizada, dizendo que, no mundo, nós ouvimos agora o discurso de Obama e os elogios, mas há um convencimento de que em breve haverá uma grande desilusão com a política real em relação à região, da nova administração americana. Embora posteriormente corrigida a ideia de Jerusalém una e indivisível, proferida durante a visita a Israel de Obama, como outras declarações que ele fez posteriormente, o facto de ter como Subsecretário, como Chefe de Gabinete na Casa Branca uma personalidade, Rahm Emanuel, que é um sionista, que foi voluntário do exército israelense em guerras na região e que é considerado um sionista fanático, e o facto de manter Robert Gates como Secretário de Defesa, são toda uma série de indícios que levam a um grande cepticismo.
Recordando o que disse o Mário Ruivo, a propósito da barbárie, eu senti como ele. Eu pertenço a uma geração que visitou os campos de concentração, que viu Auschwitz, os fornos, as câmaras de gás, Treblinka, Birkenau. É preciso ter sentido o que foi a barbárie nazi, a destruição do ghetto de Varsóvia, para encontrar algo similar, no tempo moderno, na barbárie sionista. Eu senti exactamente isso.
Disse que ia falar um pouco sobre a região, a propósito da estratégia de Obama. E parece-me que é importante termos a consciência disso.
É-nos dito agora, e desde o início, já durante a campanha eleitoral, que as tropas americanas, as forças armadas, iriam ser retiradas do Iraque, num período relativamente curto - primeiro eram 18 meses, agora não se sabe exactamente quando - mas que um esforço de guerra seria intensificado no Afeganistão.
Eu tive oportunidade ao longo da vida e conheço relativamente bem, tanto quanto é possível - são regiões muito vastas - a maioria das antigas repúblicas, de várias visitas à Ásia Central, ao Tajiquistão, Uzbequistão, Cazaquistão e estive 4 vezes no Afeganistão durante a revolução afegã, numa altura em que as mulheres tinham o rosto descoberto. Agora fala-se nos talibãs, como as sete organizações de Peshawar, mas todos os primeiros governos foram lá postos pelos americanos, pelos Estados Unidos, são criações do imperialismo norte americano.
Nessa época, em que as mulheres andavam de fuzil a tiracolo, em que havia duas vezes mais mulheres do que homens nas universidades de Cabul, na Universidade Jalalabad - ao contrário do que acontece hoje, em que houve uma involução em todos esses aspectos - tive ocasião, nesse período, de atravessar a cordilheira e de ficar com a convicção de que é um povo que é guerreiro, desde os tempos do Alexandre da Macedónia, que foi quem primeiro, com os antepassados dos actuais pashtuns, enfrentou essa extraordinária capacidade de defender a sua terra que têm os afegãos de várias etnias Era um povo diferente do que é hoje, mas os pashtuns, são povos indo-europeus ou arianos, muito mais arianos do que aqueles de que o Hitler falava.
E a guerra do Afeganistão é uma guerra que está perdida, vai continuar a ser perdida e quero chamar a atenção para um pormenor: eu tenho uma péssima ideia da comunicação social portuguesa, considero que é das piores e mais perversas do mundo, que mais desinforma e que procura difundir a ideia em relação a situações como essa do Afeganistão que será fácil de resolver o problema. Não será. Será praticamente impossível ganhar a guerra e a ideia de que os responsáveis são os talibã é falsa. Na fronteira, lutam as tribos da fronteira, sejam os Mohmand, os Shinwari, os Waziri.
Fala-se também da Al-Qaeda do Iraque, o que também é outro mito. No povo afegão não há nem 0,1% de afegãos que falem árabe, a Al-Qaeda é uma organização árabe. O Iraque é um país onde a língua oficial é o árabe. No Afeganistão não se fala árabe, falam árabe alguns mulahs, alguns sacerdotes que estudaram o Corão. É uma língua estrangeira, é uma cultura completamente diferente da deles, não tem nada a ver. Há imensa gente que combate as tropas do ocupação da NATO no Afeganistão que não tem absolutamente nada que ver com a Al –Qaeda, não tem nada a ver com os árabes. Inclusivamente, eu conheci, através de amigos meus, antigos dirigentes do Partido Popular Democrata do Afeganistão que combatem também na fronteira, no meio dessas tribos. Isto só para chamar a atenção a propósito desta desinformação.
Queria também dizer, ainda sobre a desinformação, no momento em que está na ordem do dia a temática, que tudo isto está inseparável. Eu falei do Fórum de Beirute. Das intervenções dos delegados - houve delegações de 66 países -, algumas das intervenções que foram ouvidas com maior atenção foram as dos delegados iranianos. Os delegados iranianos, até pela ajuda que dão, material e tudo, são olhados com grande simpatia. Também não quero entrar em pormenores, mas notei: falei com dirigentes do Hezbolah e com dirigentes do Hamas, e é muito mais fácil o diálogo e discutir determinados temas, inclusivamente, ideológicos com o Hezbolah, apesar da legenda negra, do que com representantes do Hamas.
Faço aqui, outra vez, um parêntesis para voltar atrás. A barbárie israelense desencadeia depois um radicalismo que passa para o domínio não só da violência, quase da irracionalidade e da agressividade. Havia membros palestinos que participaram no Fórum, que desenharam o mapa da Palestina grande, na sala, que era no edifício da UNESCO, e a seguir estava a frase “do mar até ao rio é tudo terra palestina”. Nem no Líbano, nem nos palestinos, jamais aparece a palavra Israel em algum mapa, que esteja em qualquer lugar. Não aparece. Então, centenas de pessoas, e não só palestinos, assinavam, punham a assinatura nesse mapa que estava coberto de assinaturas. Desenharam também a bandeira de Israel, à entrada, para que as pessoas ao passar a pisassem. E havia um jogo com dardos, quem quisesse ia jogar dardos em cima do retrato de Olmert, ou de Tzipi Livni. Isto para mostrar como é que depois são as consequências desta política sionista que leva a um radicalismo deste tipo.
Voltando à questão do Irão, a simpatia pelo Irão e ao mesmo tempo uma relação que se vê de grande solidariedade do Irão. Eu aproveito para dizer que estive há dois anos no Irão numa visita de quase três semanas - dizia Lenine, permitam-me aqui uma citação, que a ideologia da classe dominante é sempre determinante, tem uma influência decisiva no comportamento de uma sociedade; isto para dizer que todos somos sempre influenciados pela ideologia dominante da sociedade onde vivemos - e então, ao chegar ao Irão, eu era de alguma maneira influenciado, embora seja um estudioso da história antiga do Irão, por tudo o que tinha ouvido. E evidentemente que a realidade não corresponde em nada. Não é por acaso que há, também, essas campanhas que lançaram um míssil de dois ou três mil km de alcance. Não se pode comparar o Irão a uma tendência. Mesmo pessoas com níveis de cultura apreciável em Portugal, quando pensam no Irão pensam em Marrocos, Argélia, Tunísia, Egipto.
O Irão é um país em que o nível de desenvolvimento das forças produtivas é tal que, para encontrarmos uma comparação a países do chamado de terceiro mundo, teremos de pensar no Brasil, na Argentina ou no México, justamente por esse desenvolvimento das forças produtivas. Tem uma baixa taxa de analfabetismo, um elevado nível de cultura nas classes educadas e uma capacidade científica e tecnológica completamente diferente dos outros países. Basta dizer que é um país que produz 500 000 automóveis por ano - a maioria de empresas nacionais, não são de transnacionais -, é exportador de alimentos, tem dezenas de milhões de ovelhas, de cabras de vacas, que produz cerca de quarenta vezes mais trigo que Portugal. Exporta trigo, exporta cevada, tem uma rede de auto-estradas superior a qualquer país latino-americano e sem violência na rua. No Irão, não há nenhum homem, a não ser os sacerdotes, os mulahs, os ayatolahs, que não vista roupas ocidentais.
Evidentemente temos todos os problemas ligados a condição das mulheres, mas também aí as leis não são cumpridas. Em todas as casas de chá está escrito: “é determinantemente proibido as mulheres fumarem”. Estão todas fumando, jovens e velhas. Ninguém liga.
Também, quando se fala de fanatismo, ao contrário do que acontece no Líbano, do que acontece no Iraque, do que acontece no Afeganistão, ninguém pára na rua para a hora que se chama de oração, nunca vi ninguém parar na rua, ninguém a descalçar os sapatos, só nos santuários é que é obrigado a descalçar os sapatos, entra-se nas mesquitas de sapatos calçados.
Bem, eu vou terminar, estou no limite do tempo. Então queria terminar dizendo que, ao falar destas generalidades, eu penso que não podemos discutir a solidariedade com o povo heróico da Palestina sem enquadrar a luta desse povo com a dos povos vizinhos, a do Líbano que, também, é um povo que tem uma verdadeira saga na resistência à agressão israelense, a do povo da Síria vizinha, a de todos aqueles povos, e a outros países que são da região.
Eu penso que, neste momento, as perspectivas não são nada optimistas, nem em relação à actuação da administração Obama, ao governo que saia das eleições de Israel. O Netanyahu, o líder da direita, já disse que era preciso acabar com Gaza, que é preciso terminar o que não foi terminado, não sou optimista.
Penso que a solidariedade internacional, que é tão importante em todas estas luta, o será cada vez mais num mundo como aquele em que nós vivemos, porque se há neste momento povos que estejam a encarnar valores eternos da condição humana, são os que lutam, naquela região, contra a barbárie sionista e contra os seus aliados imperialistas.
Fico por aqui.
Domingo, 15 Fevereiro, 2009 - 10:00