«A vingança do Qatar», por Nicole Guardiola

Artigo publicado na revista África 21 em Março de 2019

Quando a Arábia Saudita declarou guerra ao Qatar, em 2017, ninguém, e muito menos os dirigentes de Doha, acreditou nas razões invocadas por Riade para impor um bloqueio total – terrestre, marítimo e aéreo – ao pequeno emirado, também membro fundador do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) , parceiro e cúmplice da política externa dos sauditas em quase todos os domínios, da economia à propagação da doutrina wahabita, até 2011.

Foram as revoltas árabes que colocaram Doha e Riade em campos opostos. Doha colocou a sua influência mediática (Al Jazeera) ao serviço da propaganda dos Irmãos Muçulmanos, que emergiam como a força política vencedora das primeiras eleições livres na Tunísia e no Egipto, que a Arábia Saudita considerava como a maior ameaça à sua própria estabilidade. Era a esta aliança que se referiam os autores do ultimato quando acusavam o Qatar de apoiar o «terrorismo» e não ao apoio (dado por sauditas e qataris) aos islamistas armados na Síria ou no Iraque. Mais que as relações com o Irão e os xiitas, o que estava em jogo era a liderança política do Islão sunita, maioritário, com a Turquia e a Arábia Saudita como principais competidores.

Fracassada uma tentativa de golpe palaciano para impedir Amim al-Thani de assumir o poder após a abdicação do seu pai em 2013, alegadamente orquestrada por Abu Dhabi, não restava outra solução senão o embargo económico total para obrigar o Qatar a submeter-se às directivas do clube liderado por Riade. A relação de forças foi mal avaliada porque o Qatar não só resistiu como está em vias de ganhar o braço-de-ferro, depois de transformar o bloqueio em oportunidade de desenvolvimento e de redução da dependência económica externa com a aplicação inteligente das enormes receitas geradas pelas exportações de gás, de que é o primeiro produtor mundial.

Não lhe faltam argumentos para comprar a neutralidade benevolente das grandes potências em relação ao seu duelo particular com a Arábia Saudita e os EAU. A começar pela base militar estadunidense de al-Udeid, construída em 1996 e inteiramente custeada por Doha, onde estacionam actualmente 10 000 efectivos envolvidos em acções de combate e vigilância em toda a região até ao Afeganistão. O Qatar anunciou em Julho passado que irá investir 1800 milhões de dólares na ampliação e modernização das instalações. No auge da crise e perante a ameaça de invasão do Qatar pelos Emirados vizinhos, o «amigo» Erdogan apressou-se a oferecer a sua ajuda ao abrigo do acordo de defesa mútua assinado em 2016 e que inclui a instalação de uma base permanente turca no Qatar.

O emir al-Thani sente-se suficientemente seguro para se libertar da tutela saudita e decidir do seu próprio caminho, escolhendo livremente os seus parceiros. Em Dezembro, anunciou a sua retirada da OPEP. A saída do CCG seria o passo seguinte. Os preparativos do Campeonato Mundial de Futebol de 2022 continuam e, entre duas visitas de Estado, o soberano segue de perto a evolução do seu clube, o Paris St. Germain, comprado em 2011 pelo fundo soberano qatari.


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