«A vida só rima com liberdade», por Carlos Almeida
Nós ensinamos a vida, senhores.
Nós, palestinos, ensinamos a vida desde que eles ocuparam o céu derradeiro.
Nós ensinamos a vida desde que eles construíram os colonatos, os muros do apartheid, depois do último céu.
Nós ensinamos a vida, senhores.
…
Nós ensinamos a vida, senhores.
Nós, palestinos, acordamos todas as manhãs para ensinar vida ao resto do mundo, senhores.
É por aqui que quero começar, caras e caros amigos, pelas palavras da poeta palestina Rafeef Ziahad.
Nós que aqui estamos sabemos a razão do momento. Porque aprendemos com o povo palestino a ensinar a vida. Aprendemos com o exemplo do povo palestino que a vida é para ser vivida em liberdade, no respeito pela dignidade de todo o ser humano. Que cada pessoa tem direito a viver livre na terra que a viu nascer, sem muros, sem barreiras, sem medo da prisão, com tempo e esperança para fazer os sonhos acontecerem. Que a vida é incompatível com a humilhação, que a vida não suporta a injustiça, que a vida é o contrário do isolamento, da tortura, da morte a espreitar em cada esquina. Aprendemos com o povo palestino, e aqui estamos hoje, uma vez mais, como aqui estivemos no passado, como continuaremos a estar no futuro, sempre que nos digam que, a vida, temos de a levar de cabeça baixa, mendigando compaixão, calando a dor, sofrendo em silêncio o insulto. Aprendemos com o povo palestino que não somos nada se esquecermos donde vimos, se abandonarmos a memória de quem somos, as dores de que somos filhos.
E não nos cansamos de o dizer, mesmo se de todas as vezes, por todas as formas, nos dizem que as vidas dos palestinos não importam, que naquela terra há os que sempre tudo podem e os que estão condenados a nunca nada ter, aqueles a quem tudo sempre se justifica, e os outros a quem tudo se cobrará, que uns têm direito a violentar, a humilhar, a roubar, a prender e a torturar, e os outros, esses que se contentem com a piedade e a comiseração, promessas vãs, palavras vazias, repetidas mecanicamente, eternamente.
Como o povo palestino, ninguém mais aprendeu a amar a vida e a ensiná-la assim, livre e plena, como ela deve ser vivida. Carrega mais de um século de negação e silêncio, de esquecimento e mentira, e em cada dia, em cada madrugada, as portas das suas casas, as ruas das suas aldeias abrem-se para o mundo, na partilha, no abraço, no encontro fraterno. Pelo direito a essa esperança, pela crença inabalável, férrea e inamovível que é o direito de todas e de todos à liberdade, o povo palestino paga todos os dias um preço sem medida. Aprendemos com ele o valor singular, único e irrepetível da vida, de todas as vidas, e é por isso que aqui estamos.
Para dizer que basta. Basta de morte, de dor e de sofrimento. Basta de guerras, de violência. E não, não se surpreendam, não se espantem os mais distraídos. Nós sabemos, de todas as vezes que aqui estivemos dissemos o mesmo, sempre o mesmo. Não chega de tanto sangue? Não basta de tanto choro? Cem anos, mais de cem anos de limpeza étnica e extermínio, cem anos de metralha, cem anos de chumbo não chegam para que compreendam que não há força, por mais bruta e assassina, que seja capaz de sufocar quem anseia por liberdade, que nenhum poder é invencível, que não há opressão que sempre dure? Escutem, por uma vez escutem a voz do poeta: «por 20 milhões de impossíveis nós ficaremos». Cem anos, cem anos e não perceberam ainda que o povo palestino não se rende, não se ajoelha, não mendiga nem se resigna, que o povo palestino é o actor soberano do seu destino e que luta e resistirá sempre? E sabem porquê? Sabem a razão, vós os que debitais frases feitas, doutas lições sobre como deve ou não deve resistir um povo que é oprimido, o que está ou não está autorizado a fazer para que tenha direito à vossa piedosa compreensão? A razão é simples e complexa ao mesmo tempo. Sabem, é próprio da vida que assim seja, os palestinos são homens e mulheres como nós, só querem ser felizes, ser reconhecidos na sua dignidade na terra onde nascem, ver os seus pais e avós respeitados, os seus filhos a crescer em paz, a construir futuro. Lutarão sempre, sempre, porque esse é o sonho que realiza a vida.
E quem os pode julgar por assim procederem? Experimentem calçar as sandálias das avós que, há 75 anos, foram expulsas das suas casas, forçadas a abandonar as suas árvores de fruto, sem saberem que nunca mais ali voltariam, que entre elas e o seu passado se ergueria uma vedação intransponível, um muro armado de insultos, humilhações e grosserias? Vistam o casaco dos homens que há mais de 50 anos se salvaram, fugindo, sabendo que para trás ficavam os corpos dos seus irmãos, dos seus pais, tombados pelas balas dos que chegavam para se apossarem do que lhes não pertencia? Metam-se na pele das mães que se interrogam hoje, em cada manhã, se no final do dia voltarão a abraçar os seus filhos que partem para a escola. (Sim, é verdade, quando podem, as crianças palestinas vão à escola, porque acreditam, porque é a vida o que lhes ensinam.) Conseguem imaginar a dor dos pais e das mães, dos filhos, das mulheres e dos maridos que esperam anos a fio para poderem um dia cumprir o luto dos seus entes queridos mortos nas prisões porque o seu corpo é retido pelo ocupante, numa medida punitiva que tem tanto de macabro como de cruel? São capazes de se imaginar sujeitos a um regime de apartheid, de segregação e discriminação, dia após dia, geração após geração? E se vos prometessem que um dia, talvez quem sabe, se esquecerem a resolução que vos prometia 48 por cento da terra que era vossa e se contentarem apenas com 20 por cento, talvez alguém pense em reconhecer-vos alguns direitos, e se depois 5, 10, 20, 30 anos passados, percebessem que tudo não passara de um embuste, que os tais 20 por cento de território já não eram nem 10 e que cada dia decorrido, uma oliveira se perdia, uma casa era demolida, e que as estradas que ontem ligavam as aldeias conduzem agora a parte nenhuma? O que fariam? Se olhassem em redor, e das instituições internacionais, dos países e organizações que se proclamam faróis da liberdade e da democracia apenas colhessem, como agora, silêncio e indiferença, sem um pingo de empatia, digam, o que fariam? Com Bertold Brecht, dramaturgo e poeta alemão, antifascista e resistente, aprendemos que nunca ninguém chama violentas as margens que comprimem o rio que tudo arrasta. Por isso, imaginar-se como outro, ser capaz de vestir a pele do outro, de sentir sobre os ombros o peso do tempo que ela carrega, e humildemente reconhecer, no destino do outro, a própria fragilidade, é esse o princípio da humanidade.
Por estes dias, escutando os discursos, os comentários doutos e sábios, a farronca e a arrogância de tantos, percebemos como escasseia esse sentido de humanidade que decorre do exercício elementar que é colocarmo-nos na pele dos outros e arriscar sentir um pouco da sua dor e da sua angústia. Como o povo palestino, ensinamos a vida, e por isso queremos afirmá-lo de forma clara. Lamentamos a perda de todas as vidas, as de sábado e de domingo, as de hoje e as de ontem, as vidas jovens que se perderam num festival de música e as vidas perdidas dos jovens a quem ninguém nunca reconheceu o direito a poderem dançar num festival de música, as de há 75 anos, todas as que se perderam no esquecimento, cada vez que os medicamentos não entraram em Gaza, cada vez que uma ambulância foi barrada num check-point, cada vez que a assistência médica não foi prestada nas prisões de Israel, cada vez que hordas de colonos semearam o terror nas aldeias palestinas, cada vez que corpos ainda com vida, varados pelas balas dos soldados israelitas, foram abandonados nas valetas, todas as vidas que se perderam sem que nenhuma palavra de indignação fosse proferida, sem que a rotina dos jornais e televisões se quebrasse, sem que nenhum dirigente político, ministro, presidente ou embaixador, se incomodasse, nem que fosse ao menos por um tweet, sem que alguém no Conselho de Segurança das Nações Unidas vetasse a condenação que se impunha. Todas essas vidas são filhas do plano insano, injusto, ilegal e cruel, que vem sendo aplicado desde há mais de cem anos, que pretende colonizar uma terra e apagar dela as marcas físicas e históricas e a própria existência material do povo que nela vive e que aí tem as raízes que o identificam como entidade, política e cultural, como tal credora de direitos que são próprios de todos os seres humanos. Essa terra tem um nome, chama-se Palestina; essa entidade tem nome também, chama-se povo palestino. Sim, por mais que vos custe ouvir, repetiremos, povo, povo palestino. E esse povo tem uma bandeira, que fazemos nossa porque é a bandeira da esperança que resiste, da coragem que não cede ao medo, da vida, da vida que queremos livre!
Não é possível exagerar a gravidade do momento que vivemos. Mais do que ninguém, o povo palestino tem bem consciência dos perigos que ele encerra. Sabendo isso, tenhamos consciência da perversidade que se oculta no uso da palavra «escalada». Quando a usamos, estamos de alguma maneira a presumir que a realidade que se vivia antes dessa dita «escalada» era de alguma maneira tolerável, que há um nível de violência e dominação a que é aceitável submeter um povo, indefinidamente, enquanto todos os dias se lhe rouba a esperança num futuro em que os seus direitos sejam enfim reconhecidos.
Há uns meses, esteve em Lisboa o historiador israelita Shlomo Sand. No final da conferência que proferiu, alguém lhe perguntou como via ele este ciclo interminável de opressão, discriminação e violência. Por estes dias, recordei-me da sua resposta: uma catástrofe, disse ele, talvez uma catástrofe aconteça. Podemos estar a vivê-la. O povo palestino, os que, como nós, somos solidários com a sua causa, sabemos bem de mais o que essa palavra significa. Por isso, repetimos. Basta! Basta de guerra, basta de violência. São ambas filhas da ocupação, são ambas instrumentos da colonização e da limpeza étnica. Precisamos de travar a corrida para o abismo, precisamos de enfrentar a irracionalidade da força bruta que temos diante nós.
Nunca como hoje, a exigência da paz, da paz no Médio Oriente, esteve tão indissoluvelmente ligada ao reconhecimento dos direitos imprescritíveis do povo palestino. E do que falo é de paz verdadeira, daquela paz plena e livre como a vida que o povo palestino nos ensina. Uma paz sem check-points, sem colonização nem limpeza étnica, sem prisões administrativas, sem pogroms, uma paz onde cada homem e cada mulher são reconhecidos na dignidade que lhes cabe como seres humanos, livres e iguais em direitos aos seus semelhantes, respeitados nos seus credos e convicções, com liberdade para os exercer e afirmar. Essa luta é um imperativo do nosso tempo, é para ela que estamos convocados. É o nosso tempo, a nossa responsabilidade.
Daqui reafirmamos o nosso compromisso solidário, firme e determinado, com a causa da libertação do povo palestino.
Com ele aprendemos que a vida só rima com liberdade.
Por isso nos batemos.
Pela Paz, contra a Guerra.
Palestina vencerá!
Texto da intervenção de Carlos Almeida, em representação do MPPM, no Acto Público convocado por CPPC, CGTP-IN e MPPM, para a Praça Martim Moniz, em Lisboa, no dia 11 de Outubro de 2023