«Trinta anos após a queda do muro de Berlim – Resistência, não muros», por Maren Mantovani

O dia 9 de Novembro marca trinta anos desde a queda do Muro de Berlim e da proclamação da superioridade do Ocidente e do seu modelo de mercado livre, com o qual iam cair todos os muros. Três décadas depois, foram construídos mais de 70 muros em todo o mundo. Visto do ponto de vista da Campanha Palestina contra o Muro, parece que o mundo está a atravessar um processo de «israelização».

De facto, até 2002, quando Israel começou a construir o seu muro do apartheid na Cisjordânia ocupada, os muros eram um tabu político. Até o muro que encarcera toda a população palestina de Gaza desde 1995 foi mantido em silêncio. A indignação que provocou a construção por Israel de um muro de oito metros de altura na Cisjordânia foi enorme a princípio, em parte porque, ao contrário da maioria dos outros muros, este é construído em território ocupado. Mas, apesar de o Tribunal Internacional de Justiça em 2004 ter declarado ilegal este muro, bem como qualquer apoio internacional ao mesmo, a decisão permaneceu nas gavetas da diplomacia da ONU, enquanto os muros se normalizaram e globalizaram.

A própria Europa já construiu mais de mil quilómetros de barreiras, seis vezes mais do que a extensão do Muro de Berlim. O presidente dos EUA, Donald Trump, iniciou o ano com a maior paralisação do governo da história do país e um Congresso dividido entre aqueles que queriam financiar o seu «grande, gordo e belo» muro e aqueles que apoiavam a versão de um «muro tecnológico», como propunha a dirigente democrata Nancy Pelosi. Índia, Turquia, Arábia Saudita, Tunísia, Marrocos, Argentina e muitos outros países estão a construir muros muito menos conhecidos.

Para entender este processo de globalização dos muros, a Stop the Wall publicou «Resistencias, no muros: una antología para un mundo sin muros», uma colectânea de ensaios e entrevistas que apresenta tanto uma análise profunda e uma investigação sobre os muros como experiências das lutas contra eles. Esta antologia traz à luz as conexões entre os muros de todo o mundo e no seu último capítulo recolhe diversas iniciativas levadas a cabo como parte da convocatória de um Mundo sem Muros feita pelos movimentos palestinos e mexicanos em 2017 e apoiada por mais de 400 movimentos e redes de todo o mundo.

O apelo inicial, que instituiu o 9 de Novembro como Dia Global de InterAcção por um Mundo sem Muros, declara:

Do Muro do Apartheid de Israel em território palestino até ao muro da vergonha dos EUA em território indígena na fronteira com o México — os muros são monumentos de expulsão, exclusão, opressão, discriminação e exploração. […] Os muros não se ergueram somente para fortificar as fronteiras do controlo estatal mas também para demarcar as fronteiras entre os ricos, os poderosos, os socialmente aceitáveis e os «outros».

Por ocasião do III Dia Global, intelectuais, jornalistas de investigação e activistas do movimento popular da Palestina, Israel, México, Estados Unidos, Grécia, Itália, Estado Espanhol, País Basco, Marrocos, Sara Ocidental, Brasil, Argentina, Índia e Caxemira compartilham nesta antologia os seus pontos de vista e visões.

A globalização dos muros é uma consequência da actual crise económica, civilizacional e ambiental global, que revela a incapacidade da elite governante de dar respostas efectivas às necessidades das pessoas. Incapazes de prometer de maneira credível o bem-estar, adoptam o que Charles R. Derber e Yale Magrass chamam a «narrativa da segurança». Esta narrativa infunde medo nas nossas sociedades, inventando ameaças falsas e piorando as ameaças reais, além de justificar a autoridade da elite governante como a única força que pode garantir pelo menos a segurança e a sobrevivência. O resultado inevitável é o surgimento de forças racistas, supremacistas e exclusivas, de Narendra Modi na Índia a Bolsonaro no Brasil, à extrema-direita europeia e a Donald Trump.

Não é por acaso que essas forças consideram Israel o seu modelo e os diferentes tipos de muros como uma ferramenta de domínio sociopolítico e geopolítico. O apartheid e o projecto colonial de Israel oferecem paradigmas, métodos e tecnologia comprovados no terreno para aplicar essas políticas racistas e supremacistas.

No entanto, os muros não são algo novo, mas uma ferramenta colonial antiga, que Israel adoptou para os seus propósitos actuais. Khury Peterson-Smith, um dos organizadores da declaração Solidariedade Negra com a Palestina de 2015, descreve na sua contribuição como os Estados Unidos são uma «Nação de Muros» , uma vez que historicamente usaram muros para avançar na sua conquista colonial. O apoio dos Estados Unidos e a adopção da versão israelita dos muros contemporâneos não são mais do que uma consequência dessa trajectória.

Juan Hernández Zubizarreta, membro do movimento basco pelos direitos das pessoas migrantes Ongi Etorri Errefuxiatuak, define os muros como elementos de uma dinâmica na qual as práticas fascistas e totalitárias avançam em direcção a um novo modelo de neofascismo. Considera-os parte da guerra das estruturas capitalistas, heteropatriarcais e coloniais contra povos dos quais se livram através da expulsão, da exploração e da necropolítica.

Para Israel, a globalização dos muros, o aumento da extrema-direita e as políticas de expulsão e exclusão são uma fonte inestimável de legitimação e, ao mesmo tempo, abrem mercados cada vez maiores. Um resumo do extenso estudo de Mark Akkerman sobre a indústria do muro mostra um aumento global de 8% ao ano e um aumento europeu de 15% nos gastos com a militarização fronteiriça. Riya AlSanah e Hala Mashood mostram como as empresas militares e de segurança nacional de Israel utilizam a sua vantagem comparativa sobre outras ao vender a sua militarização fronteiriça e tecnologia de muro como «testadas no terreno», não apenas para a construção do muro dos Estados Unidos na fronteira com o México.

No quadro da narrativa da segurança, o outro lado do paradigma dos muros é, segundo Jamal Juma' , a criação de uma sociedade de vigilância que cria um panóptico que despoja as pessoas de todas as camadas que possam proteger os seus direitos e a sua intimidade. Mais uma vez, a tecnologia e a metodologia israelitas são líderes de mercado, utilizando a Palestina como laboratório ao ar livre 24 horas por dia. Os recentes escândalos na AnyVision ou o spyware da NSO Group são apenas dois exemplos.

O sistema dos muros é penetrante e não está apenas nas fronteiras nem se expressa apenas em estruturas físicas. Os muros das nossas mentes — ou o que Gilberto Conde denomina as cartografias imaginárias — são o resultado do poder simbólico dos muros e do poder normativo do seu regime associado de leis, políticas públicas, ideologias e muitos outros factores que impedem o acesso à justiça.

É claro que só juntos podemos derrubar estes muros.

A antologia também oferece espaço para reflectir sobre as acções iniciadas em conjunto para derrubar os muros: os Tribunais Populares, as Caravanas Populares, assim como as iniciativas de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) para fazer desmoronar a arquictetura da impunidade que protege as empresas que permitem, facilitam e beneficiam com os muros da injustiça.

As e os activistas de base e movimentos populares à frente da luta reiteram nas suas contribuições o seu apelo para cortar os laços de cumplicidade, de apoio de Israel à militarização e às políticas racistas em todo o mundo. Gizele Martins, do movimento das favelas no Rio de Janeiro, reflecte sobre a sua experiência na Palestina, onde viu utilizar as mesmas tácticas que utiliza a polícia militar do Rio, treinada pela ISDS, uma empresa de segurança israelita. Sublinha eloquentemente que é imprescindível que os movimentos se unam num momento em que «globalizam a maneira como nos matam».

Em vez de ceder à tentação de se deixar levar pelos ataques cada vez mais furiosos e brutais, é hora de levantar a cabeça, olhar para além dos muros, ver outras lutas e ligá-las à nossa para juntas ganharem força e confiança. Este olhar para além dos muros permite-nos vislumbrar no horizonte um mundo de justiça, liberdade e igualdade, dá-nos esperança e marca o nosso rumo.

A antologia Resistencia, no muros. Una antología para un mundo sin muros pode ser lida neste link: http://antologia.stopthewall.org/

Maren Mantovani é coordenadora das relações internacionais da campanha palestina Stop the Wall.

Este artigo foi originalmente publicado no site Rebelión em 9 de Novembro de 2019. Tradução do MPPM.


Os artigos assinados publicados nesta secção, ainda que obrigatoriamente alinhados com os princípios e objectivos do MPPM, não exprimem necessariamente as posições oficiais do Movimento sobre as matérias abordadas, responsabilizando apenas os respectivos autores.

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