Tantura: De aldeia piscatória a estância balnear com um massacre pelo meio
Na noite de 22 para 23 de Maio de 1948, uma semana após o estabelecimento do Estado de Israel, o 33º batalhão da Brigada Alexandroni lançou um ataque contra a aldeia palestina de Tantura, utilizando fogo de metralhadoras pesadas seguido de um ataque de infantaria. O combate foi de curta duração mas, após a rendição dos aldeãos, as milícias sionistas procederam ao massacre de mais de duas centenas de prisioneiros desarmados.
A notícia do massacre era conhecida do lado palestino, mas sistematicamente negada pelo lado israelita. Uma tese de mestrado de Theodore Katz, um aluno da Universidade de Haifa, que confirmou a ocorrência do massacre com base em dezenas de testemunhos de sobreviventes palestinos e de milicianos sionistas, foi denegrida e o seu autor perseguido em tribunal. O historiador Ilan Pappé, professor de Katz, defendeu a veracidade da tese o que lhe valeu a expulsão da Universidade de Haifa e o exílio em Inglaterra, onde é professor na Universidade de Exeter.
Mas o tema do massacre de Tantura volta agora à actualidade, com enorme ressonância, com a estreia mundial do filme Tantura, do realizador israelita Alon Schwarz, no Festival de Cinema de Sundance, no passado dia 20 de Janeiro. Schwarz partiu das gravações áudio de Katz e reuniu novas entrevistas com vários ex-soldados e outras testemunhas que confirmam o massacre e fornecem detalhes aterradores.
Antes, durante e depois de 1948
Até 1948, Tantura era uma tranquila aldeia costeira, nas encostas do Monte Carmelo, no Norte da Palestina. Tinha cerca de 1700 habitantes que viviam da pesca e do cultivo de cereais e pomares de citrinos, bananas e outras árvores de fruto.
A sua localização ditou o seu destino. Em 11 de Maio de 1948, David Ben-Gurion ordenou à milícia sionista Haganah que procedesse à «limpeza» de Tantura e outras aldeias que constituíam um enclave árabe na estrada entre Telavive e Haifa. A Brigada Alexandroni foi encarregada da tarefa com as consequências que hoje se conhecem.
Poucas semanas depois da limpeza étnica de Tantura, um grupo de colonos sionistas estabeleceu aí o kibbutz de Nahsholim. Instalaram-se nas casas dos palestinos mortos ou expulsos e fizeram a colheita dos cereais e dos frutos que estes tinham cultivado.
No ano seguinte, novo grupo de colonos fundou o moshav de Dor, um pouco mais a sul.
Sobre as ruínas de Tantura ergue-se hoje a estância balnear de Dor, que serve os dois povoamentos, e é um local de atracção turística. O seu parque de estacionamento foi construído sobre a vala comum onde foram sepultadas as vítimas do massacre de Maio de 1948.
A tese de mestrado de Katz
Em Março de 1998, enquanto estudante na Universidade de Haifa, Theodore Katz submeteu uma tese de mestrado ao departamento de história do Médio Oriente com o título «O Êxodo dos Árabes das aldeias no sopé do Sul do Monte Carmelo, em 1948». Katz, então nos seus cinquenta anos, recebeu uma nota de 97%. A tese foi depositada na biblioteca da universidade e o autor pretendia prosseguir com os estudos de doutoramento.
A investigação de Katz, com base em testemunhos compilados em 140 horas de entrevistas áudio com dezenas de testemunhas judias e árabes das batalhas, confirmou os relatos palestinos de que o massacre em Tantura ocorreu em duas fases. Depois de os chefes da aldeia terem declarado a rendição, os soldados correram as casas matando qualquer pessoa que encontrassem. Isto terá deixado uma centena de aldeões mortos. Dos restantes, os homens em idade de combate – mais de uma centena – foram levados para a praia, onde foram interrogados e executados.
Em Janeiro de 2000, o jornalista Amir Gilat requisitou a tese de Katz à biblioteca da universidade e publicou um artigo sobre o massacre no jornal Maariv. O artigo causou celeuma. Para além do processo de calúnia iniciado pela Associação de Veteranos Alexandroni, a universidade decidiu criar uma comissão para reexaminar a tese de mestrado. A nova comissão decidiu desqualificar a tese.
Katz sofreu um derrame cerebral apenas semanas antes da sua primeira audiência em tribunal. O processo judicial questionou a exactidão dos testemunhos orais sobre os quais as suas afirmações foram fundadas. Katz, actualmente ainda vivo, embora de saúde precária, afirma ter sido coagido a escrever uma retractação, o que ele diz ser o seu maior arrependimento. Reclamou quase imediatamente, mas a sua reclamação não foi aceite.
As confissões de membros da Brigada Alexandroni recolhidas por Alon Schwarz no seu filme vêm confirmar a veracidade da tese de Teddy Katz: soldados da Brigada Alexandroni massacraram homens desarmados depois de a batalha ter terminado.
Os acontecimentos de Tantura tiveram também um impacte profundo na carreira de Ilan Pappé. Sendo o único académico da Universidade de Haifa a sair publicamente em defesa de Katz, entrou em confronto com a sua instituição, o que o levou a deixar o país e a restabelecer a sua carreira na Universidade de Exeter, no Reino Unido.
O filme de Schwarz
O filme baseia-se muito nas gravações áudio de Teddy Katz, mas Schwarz também registou em vídeo entrevistas com vários antigos soldados, muitos agora na casa dos 90 anos, assim como académicos, kibutzniks, a juíza do processo contra Katz e sobreviventes palestinos.
Alguns antigos soldados sentem alívio ao relatar os actos de guerra que testemunharam ou em que participaram em Tantura, outros dizem que não se lembram ou recusam-se a falar sobre isso.
Adam Raz, um investigador no Instituto Akevot para a Investigação do Conflito Israelo-Palestino que assessorou o realizador, relata, em artigo publicado no Haaretz de 20 de Janeiro, alguns dos testemunhos apresentados no filme.
De acordo com Moshe Diamant, um antigo soldado, os aldeões foram mortos a tiro por um «selvagem» usando uma submetralhadora, no final da batalha. Aquando do processo contra Katz, os antigos soldados compreenderam tacitamente que iriam fingir que nada de anormal tinha ocorrido após a conquista da aldeia. «Nós não sabíamos, não ouvíamos. Claro que todos sabiam. Todos eles sabiam.»
Outro ex-soldado, Haim Levin, relata que um membro da unidade passou por um grupo de 15 ou 20 prisioneiros de guerra «e matou-os a todos». Diz ter ficado horrorizado, e perguntou aos companheiros o que se passava. «Não fazes ideia de quantos [de nós] esses tipos mataram», disseram-lhe.
Micha Vitkon, outro soldado da brigada, falou de um oficial «que em anos posteriores foi um grande homem no Ministério da Defesa. Com a sua pistola, ele matou um árabe a seguir a outro. Estava um pouco perturbado, e isso foi um sintoma da sua perturbação». Segundo Vitkon, ele fez isso porque os prisioneiros recusaram-se a divulgar onde tinham escondido as armas restantes na aldeia.
«O que quer?», pergunta Shlomo Ambar, que subiria ao posto de brigadeiro-general e chefe da Defesa Civil, o precursor do actual Comando da Frente Interna. «Que eu seja uma alma delicada e fale de poesia? Afastei-me. E é tudo. Já chega.» Ambar, falando no filme, deixou claro que os acontecimentos na aldeia não tinham sido do seu agrado, «mas porque não falei na altura, não há razão para eu falar sobre isso hoje».
No que Adam Raz considera ser um dos testemunhos mais deprimentes no filme, Amitzur Cohen fala dos seus primeiros meses como combatente na guerra: «Eu era um assassino. Eu não fiz prisioneiros.» Cohen relata que se um pelotão de soldados árabes estivesse de pé com as mãos levantadas, ele matava-os a todos. Quantos árabes é que ele matou fora do quadro das batalhas? «Eu não contei. Eu tinha uma metralhadora com 250 balas. Não sei dizer quantos.»
Os testemunhos dos soldados da Brigada Alexandroni juntam-se ao testemunho escrito por Yosef Ben-Eliezer há cerca de duas décadas. «Eu fui um dos soldados envolvidos na conquista de Tantura. Eu estava ciente dos assassinatos na aldeia. Alguns dos soldados mataram por sua própria iniciativa, sem obedecer a ordens.» Eliezer foi um Judeu alemão sobrevivente do Holocausto que emigrou para a Palestina, combateu na Haganah e mais tarde se tornou pacifista e converteu-se ao cristianismo.
Um parque de estacionamento sobre uma vala comum
Os frequentadores da Praia de Dor talvez não saibam que por baixo do local onde estacionaram o seu carro estão os restos mortais de duas centenas de palestinos, vítimas do massacre de 1948, porque isso lhes foi ocultado pelos sucessivos governos israelitas.
Mas agora, para o seu filme, Schwarz recolheu testemunhos e documentos que comprovam que após o massacre as vítimas foram enterradas numa vala comum escavada no cemitério local e que se encontra agora debaixo do parque de estacionamento de Praia de Dor.
O filme apresenta também a conclusão de peritos que não só determinaram a localização exacta da sepultura mas também estimaram as suas dimensões: 35 metros de comprimento, 4 metros de largura.
Documentos obtidos nos arquivos de Israel mostraram que, na sequência do ataque, o quartel-general do exército tinha ouvido receios de que o grande número de cadáveres não enterrados em Tantura pudesse levar a um surto de febre tifóide.
O comandante militar no local foi repreendido por não ter tratado adequadamente do enterro dos corpos dos Árabes, Mas em 9 de Junho, o comandante de uma base vizinha tranquilizou: «Ontem verifiquei a vala comum no cemitério de Tantura. Está tudo em ordem.»
Um ataque mal planeado?
Num artigo de Jonathan Cook, publicado na Electronic Intifada em 3 de Junho de 2015, ele revela que Ilan Pappé acredita que a extensão do massacre em Tantura ocorreu como resultado de uma operação de expulsão mal planeada.
As expulsões faziam parte do Plano Dalet, que fez com que mais de 500 aldeias palestinas fossem etnicamente limpas pelas forças sionistas em 1948. A maioria foi mais tarde arrasada e as suas terras passaram para comunidades exclusivamente judaicas. Os seus habitantes formaram a maior parte dos 750 000 refugiados cujo regresso Israel proibiu até hoje.
Segundo Pappé, em vez de atacar Tantura por três lados, como aconteceu noutros locais, empurrando a população para norte, em direcção ao Líbano e à Síria, a brigada cercou a aldeia, não deixando aos habitantes nenhuma rota de fuga.
Tantura, observou Pappé, era a maior e mais significativa das aldeias numa zona costeira entre Haifa e Tel Aviv que os líderes israelitas queriam que fossem esvaziadas da população palestina. Das 64 aldeias palestinas da área, apenas duas, Fureidis e Jisr al-Zarqa, ambas perto de Tantura, foram autorizadas a sobreviver após intensa pressão das comunidades judaicas vizinhas, que queriam os aldeões como força de trabalho.
Das muitas dezenas de massacres perpetrados pelas milícias sionistas entre 1947 e 1949, só dois se comparam a Tantura em dimensão: Deir Yassin, perto de Jerusalém, e Lydd, actualmente a cidade de Lod, de maioria judaica, perto do aeroporto Ben-Gurion.
De acordo com os relatos dos historiadores e das pessoas envolvidas, os outros dois massacres em grande escala - em Deir Yassin e Lydd - ocorreram em circunstâncias diferentes, e foram provavelmente mais planeados.
Deir Yassin foi atacada no início de Abril de 1948 pela milícia sionista Irgun, comandada por Menachem Begin, que viria a ser primeiro-ministro de Israel. O ataque vitimou mais de uma centena de palestinos. O objectivo era semear tanto medo que os habitantes de outras aldeias fugissem sem lutar.
Três meses depois, em 11 de Julho, na cidade de Lydd, soldados sob o comando de Yitzhak Rabin, que também viria a ser primeiro-ministro e prémio Nobel da Paz, dispararam sobre habitantes refugiados numa mesquita, fazendo pelo menos 176 vítimas.
Para que a memória não se apague
Em Maio de 2015, cerca de 300 activistas reuniram-se no parque de estacionamento da Praia de Dor numa tentativa de pôr fim ao longo silêncio sobre Tantura imposto à memória colectiva dos israelitas.
O evento é descrito por Jonathan Cook no artigo já citado.
Os manifestantes depositaram coroas de flores no parque de estacionamento, marcando o local da vala comum no cemitério da aldeia, onde foram enterrados os mais de 200 palestinos executados na noite de 22 de Maio de 1948, e depois fizeram uma curta marcha através de uma área onde outrora se encontravam as 250 casas de Tantura. A marcha terminou na praia, onde em 1948 muitos dos aldeões tinham sido interrogados antes de serem mortos.
Os organizadores esperavam pressionar as autoridades israelitas para permitir que a minoria palestina israelita erga no local um memorial permanente às vítimas. A pouca distância, existe há décadas um monumento com os nomes dos 13 combatentes sionistas que terão morrido no ataque a Tantura.
Entre os presentes estavam alguns sobreviventes do massacre de 1948 que tinham sido poupados por serem crianças.
Um dos sobreviventes, Mahmoud Amar, de 73 anos, que tinha seis na altura do massacre, ficou muito emocionado com a cerimónia comemorativa: «Tenho aqui muitos parentes enterrados debaixo do alcatrão, que são invisíveis para todos estes visitantes que pensam neste lugar simplesmente como uma estância de férias. Chegou a altura de dar aos mortos o respeito que merecem.»
Também estiveram presentes Ilan Pappé e Teddy Katz.
Katz, sentado numa cadeira de rodas, fez um breve discurso à entrada do hotel de Nahsholim, em que chamou «vergonhosos» aos acontecimentos em Tantura e pediu desculpa em nome dos Israelitas.
Para Pappé, Tantura foi um teste à vontade dos Israelitas de abandonar as suas narrativas tradicionais sobre a Nakba, isto é, que os refugiados tinham deixado as suas aldeias em grande parte por vontade própria e que o exército de Israel era «o mais moral do mundo».
Na imagem: O cortejo de manifestantes na praia de Tantura surpreende os veraneantes israelitas (Foto: Jonathan Cook)