«Smotrich enganou-se: o mundo permitiu», por Carlos Almeida
No dia 9 de Outubro de 2023, o ministro da Defesa de Israel de então, Yoav Gallant, declarou, “ordenei um bloqueio completo à Faixa de Gaza. Não haverá electricidade, nem alimentação, nem combustível, tudo está encerrado. Estamos a lutar contra animais humanos e agimos em consonância”.
Era o tempo em que dirigentes mundiais, de Biden a Von der Leyen, de Macron a João Cravinho, à época ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, corriam para os braços de Netanyahu, proclamando que Israel tinha o direito de se defender. Acrescentavam que tudo devia ser feito nos limites do direito internacional humanitário, sabendo que Israel sempre rejeitara a aplicação das convenções de Genebra aos territórios palestinos ocupados em 1967. Nas televisões e nos jornais, justificava-se a ofensiva que Israel se preparava para lançar sobre Gaza e de cujos objectivos não fazia segredo. Herzog, o presidente de Israel, referindo-se à população palestina, dizia no dia 13 de Outubro de 2023: “é a nação inteira que é responsável; a retórica sobre os civis não estarem envolvidos não é verdadeira… lutaremos até lhes quebrarmos a espinha”. Dois dias depois, nas páginas deste mesmo jornal, alguém escreveu, “Esta é a guerra que Israel não pode perder. Mesmo que a morte de cada criança palestiniana nos doa tanto como a de cada criança israelita”.
Em Janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça considerava haver “risco real e iminente” de serem infligidos, por Israel contra o povo palestino, danos irreparáveis decorrentes da prática de actos descritos no artigo 3º da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Dois meses depois, o mesmo Tribunal classificava a situação em Gaza como “catastrófica” e reiterava a urgência na aplicação das medidas provisórias decretadas antes.
Depois do dia 2 de Março do ano corrente, Israel apertou o garrote. Destruída a infra-estrutura de saúde que servia o território, bloqueada a acção das Nações Unidas, em particular da UNRWA, a situação na Faixa de Gaza tornou-se cataclísmica. No dia 29 de Julho último, foi ultrapassado o registo de 60 mil pessoas mortas. Segundo Catherine Russell, directora executiva da UNICEF, nos últimos 21 meses, foram assassinadas dezassete mil crianças em Gaza, o equivalente a uma sala de aula (28 crianças) por dia, e cerca de 33 mil foram feridas.
Lê-se no último relatório do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários que as taxas de desnutrição aguda duplicaram em Khan Younis e aumentaram 70% em Deir al Balah entre Maio e Julho. Na cidade de Gaza, a taxa de desnutrição aguda global disparou de 4,4% em Maio para 16,5% na primeira quinzena de julho, atingindo o limiar da fome por desnutrição aguda. Segundo o Sistema de Classificação Integrada sobre Segurança Alimentar, já em Setembro, cerca de meio milhão de pessoas estará no nível máximo de privação de alimentos, fase 5.
A situação vivida em Gaza não pode surpreender ninguém, ela foi anunciada, prevista e documentada, dia após dia. Não se trata de uma catástrofe natural, uma inundação, uma seca ou um sismo. Não é, sequer, como pretendem os propagandistas de Israel, resultado de guerras ou conflitos entre grupos armados, visíveis em algumas partes do mundo, e que, provocando o êxodo de populações e o despovoamento dos campos, geram situações dramáticas de escassez alimentar, fome e doenças.
Em Gaza, a terra foi queimada, reduzida a escombros, tornada improdutiva, todas as vias de abastecimento alimentar e humanitário foram cortadas e as pessoas, enclausuradas num território, trucidadas por bombardeamentos maciços e submetidas à fome. Entre a decisão política e a manobra militar, uma sequência sem fim de gestos de homens e mulheres opera diariamente uma máquina macabra construída para aniquilar um povo, entretendo-se amiúde com requintes de sadismo e crueldade.
É falso, como a imprensa internacional confirma, que a ajuda humanitária fornecida pelas agências das Nações Unidas seja desviada pelas forças da resistência palestina. Pelo contrário, são os bandos armados a soldo do exército israelita que organizam a pilhagem e semeiam o caos para justificar a acção da fundação israelo-americana dita “humanitária”, um braço da política de Israel.
Nada acontece por acaso, por incompetência ou inoperância como pretendem alguns. A fome é usada intencionalmente como arma de guerra para forçar a deslocação da população na busca desesperada por comida, conforme os planos operacionais do exército de Israel e, no limite, para favorecer o projecto de limpeza étnica da Faixa de Gaza que sempre promoveram. Em Agosto de 2024, o ministro de Israel Smotrich considerava legítimo sujeitar à fome dois milhões de pessoas, mas lamentava, “ninguém no mundo o permitirá”. Enganou-se.
O mundo sabe o que acontece em Gaza, todos os responsáveis políticos conhecem – sempre conheceram – a realidade que se vive na Palestina, em toda a Palestina, a segregação e o apartheid, a ocupação e a colonização, a limpeza étnica, as humilhações e a violência, o bloqueio a Gaza desde 2006. A maior parte escolheu ignorar, a um tempo, alimentando a ficção em torno de uma solução de dois Estados, e contribuindo, por acção ou omissão, para a sua inviabilização material. Os que agora se mostram preocupados com o “drama humanitário”, que exibem surpresa ou simulam indignação com os planos para a ocupação total da Faixa de Gaza ou o avanço da colonização e a anexação da Margem Ocidental não podem clamar que os limites foram ultrapassados se até aqui consentiram, armaram, financiaram, justificaram; se continuam, hoje ainda, a lucrar com o genocídio e a continuação da limpeza étnica. Mais do que cúmplices, são autores materiais e responsáveis pelo que acontece e devem por isso ser julgados.
Aqui chegados, toda a ajuda humanitária é urgente e imperativa. O grau de privação a que o povo palestino está a ser submetido exige a mobilização de recursos técnicos e operacionais que só as agências das Nações Unidas estão em condições de fornecer. E é incompatível com o prolongamento da carnificina. Despejar mantimentos sobre Gaza e permitir, ao mesmo tempo, que Israel continue a terraplanar o território e a massacrar a sua população é só mais um degrau na ignomínia que nos trouxe até aqui. Anúncios de reconhecimento de um Estado da Palestina, embrulhados em retórica colonial e racista, sem um passo que seja no sentido de sancionar quem diariamente leva a cabo o extermínio do povo que ali habita é, simplesmente, infame.
O povo palestino, em Gaza, na Margem Ocidental, em toda a Palestina, precisa de alimentos sim, de medicamentos, de toda ajuda, mas também, não menos importante, que os seus direitos sejam reconhecidos e enfim realizados. Exige ser tratado com respeito e dignidade, sem tutelas nem paternalismos. Tão pouco que é e, no seu caso, sempre tanto que parece.
Carlos Almeida é Historiador e Vice-Presidente do MPPM – Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente
Este artigo foi publicado na edição em papel e na edição on-line do jornal PÚBLICO em 8 de Agosto de 2025
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