Seminário Gaza 2009: Intervenção de Silas Cerqueira

Começarei por reparar duas involuntárias falhas de protocolo. Primeiro, o nosso convidado da UNWRA, Director Executivo da UNWRA chama-se Michael Kingsley Nyinah, porque ele é ganês e o seu nome ganês é Nyinah e de outro modo podia-se pensar que ele seria britânico ou de outra nacionalidade. Não é ofensa nenhuma ser britânico, mas devemos respeitar a realidade. Por outro lado, queria saudar a presença aqui, pelo que vejo, de vários embaixadores ou representantes de embaixadas. Temos muito gosto na vossa presença e desejaremos manter boas relações para o futuro nesta causa comum que é a causa da Palestina e da Paz no Médio Oriente que dá nome ao nosso Movimento.
Já agora, permito-me saudar, também, o orador precedente o Francisco Assis, que gostei de ouvi. E estou de acordo com muito do que ele disse, só exprimindo a minha perplexidade perante, digamos, a acentuação das divergências entre nós, porque penso que o que nos une é mais importante do que aquilo em que divergimos. Por exemplo, o Francisco Assis é socialista, eu sou comunista, mas não estou aqui a título do meu partido, nem ele próprio está aqui a título do seu partido, logo deveríamos até concordar substancialmente, porque ambos os partidos têm como objectivo o Socialismo, portanto não vejo razão para acentuar essas divergências.
De qualquer modo, e perdoem-me, enfim, esta forma de tratar do assunto, continuando, em matéria de divergências, também não estou inteiramente de acordo com o que disse o nosso Presidente no início da sessão, porque aquilo que ele disse é o que se diz, efectivamente - foi a “revanche” da derrota no Líbano, foi isto e foi aquilo - mas o Seminário, se quer ser científico, tem que ir para além das aparências, tem que ir à essência da questão e então o que os dados mostram e numa análise que ultrapassaria o tempo que me é dado, é que tudo isso foram, digamos, pretextos avançados.
Como disse a Comissária Geral da UNWRA, Karen AbuZayd, uma amiga minha de há anos - e foi por isso, por aquilo que ela disse, que pensámos em convidá-la a vir -, ela disse, ainda antes da invasão e da guerra destruidora de Gaza, que essas questões das contradições com o Hamas, etc., eram secundárias e que Gaza está no limite de se tornar o primeiro território reduzido, intencionalmente, a um estado de destituição abjecta e condenou esta anulação de Gaza não só por Israel, mas pela comunidade internacional, como cúmplice.
Eu penso que isto é corajoso da parte de uma alta dirigente, enfim uma alta funcionária das Nações Unidas, que de acordo com as regras estritas não pode alargar-se, a matéria, digamos assim, política.
E efectivamente, eu direi o seguinte: se analisarmos o que se passou, vê-se claro que não teve absolutamente nada a ver com os morteiros artesanais mandados de Gaza. Pode-se discutir se foi politicamente oportuno, isso é outra questão. Pode-se discutir isso, mas é evidente que o princípio da resistência é sagrado e resistir à opressão, ao colonialismo e ao fascismo é já uma conquista da liberdade da parte das forças e dos povos. Não quer dizer que todas as acções de resistência sejam, num determinado momento, oportunas, ou certas, ou que concordemos com todas elas.
Bom, mas na realidade, aquela vasta ofensiva militar estava preparada há longos meses. Mais ainda: desde que os palestinos foram encerrados em Gaza, como a maior prisão ao ar livre do mundo, que uma acção deste tipo estava prevista, que o bloqueio visa e tem conseguido reduzir aquele povo pela fome. Portanto, tudo isto ultrapassa esses aspectos, que sendo embora reais, de facto, são um efeito e não uma causa. A causa é outra, e aí irei mais longe que o nosso companheiro Francisco Assis. A causa está no colonialismo, na natureza colonialista do Estado de Israel. E aquilo que é legítimo pôr é que no século XXI, este último colonialismo mais perverso, mais armado até com a arma nuclear, não tem o direito de existir.
Como o Estado português, quando era colonialista, também não tinha direito de existir como estado colonialista e uma vez derrubado, não por outras forças, mas por nós próprios, - incluindo o major Tomé, que está aqui na minha frente -, uma vez derrubado esse Estado, bom, procurámos construir os fundamentos de um outro Estado, um Estado que não é colonialista, antes pelo contrário, como define a Constituição no seu artigo 7º, e com isso desenvolveu as melhores relações de amizade e cooperação com os povos até então colonizados.
Portanto, foi essa a acção deliberada e mais direi o seguinte: uma acção desse tipo vai-se repetir; se os problemas de fundo e de raiz não estiverem resolvidos, vai-se repetir.
É claro que foi uma acção onde os dirigentes de Israel se enganaram redondamente. Eles não contavam com a resistência dos militantes do Hamas, eles não contavam com a resistência de todo o povo. Porque não é possível resistir àquela força brutal, aquela força efectivamente de tipo nazi, não é possível resistir se não há um apoio moral e material do povo, do povo que nos rodeia.
E, portanto, a derrota de Israel, a derrota política, não a derrota militar - no Líbano foi militar e política - mas a derrota do Estado de Israel no plano político vê-se pelos objectivos enunciados para a agressão.
O primeiro objectivo era erradicar o Hamas. Não erradicaram. Não, não conseguiram atingir nem capturar o núcleo dirigente do Hamas. Não conseguiram.
Depois o segundo objectivo passou a ser pôr termo ao lançamento dos morteiros. Já era um objectivo muito mais razoável.
Devo dizer que em relação ao primeiro objectivo Israel esteve próximo, mas aí intervieram também os movimentos de solidariedade, a opinião pública A opinião pública mundial teve aí um papel decisivo, como já direi.
O terceiro objectivo, finalmente, foi alegadamente controlar o contrabando de armas nos túneis. Os túneis foram bombardeados, que não se imagina. Sabem que são muitas dezenas de túneis. Eu vi fotografias - era para ter trazido uma e esqueci-me de a trazer - vi uma de um passador num túnel a fazer passar uma cabra, porque os túneis servem fundamentalmente para alimentar um povo que se pretende reduzir à fome. Portanto, o que passa por dezenas e dezenas de túneis - e há todo um processo complexo: construir os túneis não é fácil, tem que se pagar um arrendamento aos proprietários dos terrenos, há todo um processo, que, a que os egípcios fecham os olhos - toda esse sistema de túneis, que foi visado com o pretexto de contrabando de armas, todo esse sistema, efectivamente, serve para alimentar aquele povo.
E por isso, a UNWRA, no seu programa, e as Nações Unidas, reivindicam a abertura das fronteiras de forma a poder haver, não só a passagem de alimentos e de remédios, mas de bens comerciáveis, quer dizer dar-se vida de novo àquele povo.
Em relação a isto direi o seguinte: há notícias, por exemplo hoje - também convém trazer notícias de hoje - há notícias de que no dia 22 de Fevereiro haverá um encontro, no Egipto, entre dirigentes do Hamas e do Al-Fatah. Porque a cisão inter-palestiniana que o nosso Movimento lamenta, para não dizer reprova, a cisão inter-palestina é um dado fundamental de agressividade, da guerra da violência e do colonialismo israelita. Há, portanto, o anúncio deste encontro, mas que pode ser suspenso, em qualquer momento, porque quando há passos nessa direcção, surge logo um incidente qualquer e, portanto, não se avança e a questão cai por si.
Por outro lado há, também, a possibilidade de anúncio de um cessar-fogo de longa duração que talvez se venha a confirmar nos próximos dias. Bom, agora, repito, estas notícias positivas e uma outra, enfim, de que nós riremos um pouco, mas que tem significado: hoje dia dos namorados, S. Valentim, os horticultores de Gaza foram autorizados a exportar 25 000 cravos, ou seja a flor da nossa revolução, foram autorizados a exportar 25 000 cravos para a Holanda. Bom, não é de modo nenhum o fim do boicote, mas, enfim, foi uma concessão, foi uma concessão assim feita.
Agora como é que o colonialismo israelita pode vir a terminar? Como é que o colonialismo israelita pode ser, digamos, abolido?
Por um lado pela resistência, por outro lado pela negociação. E é lamentável que se vejam diferentes destacamentos palestinos, uns na posição de resistência, outros na posição da negociação, que neste caso pode significar quase uma rendição. Havia um dirigente, que combinava a resistência com a negociação, esse dirigente era Yasser Arafat, mas foi assassinado e não foi por acaso.
Portanto, nesta perspectiva, também, há uma questão de que as Nações Unidas não podem falar, mas de que nós, que somos Movimento não governamental, livre e independente, podemos falar. Isto é, é impossível encarar o fenómeno do colonialismo israelita separado do fenómeno do imperialismo ocidental e, em particular, do imperialismo americano. Isto, num Seminário científico é absolutamente necessário que se diga: eles estão intimamente ligados.
Agora, é verdade que a nova presidência mudou de estilo e talvez em certas áreas venha a mudar de política. Mas porquê? Precisamente porque enfrentou, a nova presidência enfrentou uma enorme resistência, porque teve fracassos, uns atrás dos outros, como um milhão e meio de mortos no Iraque, com centenas de milhares no Afeganistão e noutras áreas, portanto houve aí um recuo, digamos assim, forçado. Agora, em que medida isso se traduzirá numa alteração da política em si, ainda resta ver. Mas há uma condição indispensável: é que nós como movimento de opinião, continuemos a agir, a lutar, a pressionar, a protestar, a levantar a nossa voz. E por isso, também, estamos aqui neste Seminário que, dizendo isto tudo, é de acção.
Em relação à União Europeia, eu pedia depois, no período de esclarecimentos, que o Francisco Assis me explicasse, porque não sei, em que pé está aquela resolução que visava, creio que era na Assembleia, no Parlamento Europeu, creio que era isso, visava o “rehaussement”, o “upgrading”, digamos das relações entre Israel e a União Europeia. Isso passou-se antes da agressão, antes da guerra. Também o Pierre Galand, que é o especialista na matéria nos poderá esclarecer em relação a isso. Porque antes de pedirmos à União Europeia, que aplique sansões a Israel, teremos que começar por pedir que ponha de parte esse “rehaussement” esse “upgrading” das relações comerciais, científicas e outras com Israel. Isso seria o primeiro passo. Não sei se isso está suspenso ou se já foi abolido.
Por isso, amigas e amigos aqui presentes - e devo dizer com satisfação com a sala quase cheia, incluindo vários jovens entre nós - por isso, nós, ao organizarmos este seminário, convidámos Michael Kingsley, - inicialmente tínhamos convidado a Comissária Geral, Karen AbuZayd -, para ele fazer aqui, não uma intervenção política como aquela que estou a fazer, mas para nos informar, em termos insuspeitos, sobre a situação humanitária em Gaza, porque pensamos que essa verdade é mais mobilizadora do que muitos outros discursos. Mas, também, convidámos o Pierre Galand, velho amigo, enfim e grande perito nas questões da EU uma vez que preside à coordenação europeia das associações de solidariedade com a Palestina, também o convidámos para ele nos esclarecer quanto à acção de solidariedade no âmbito da União Europeia e o que é que melhor podemos fazer.
Amigas e amigos, fico por aqui, sublinhando uma coisa que o Francisco Assis disse e com muita razão, esta questão é uma questão ética, é uma questão moral. Não podemos deixar, como escrevia aquele jornalista famoso, Robert Fisk, não podemos deixar que o assassinato deliberado de centenas de crianças e mulheres, de civis, não podemos deixar que isso seja uma notícia que se dá e que fique, por assim dizer, banalizada. Não, não pode ser! É um imperativo ético, no plano da consciência moral da humanidade. É um imperativo ético, porque esses crimes horrorosos são crimes estudados, são crimes planeados, são crimes planeados de longa data, com um só  objectivo que é o de espalhar o terror e fazer com que os palestinos fujam de Gaza e fujam da Cisjordânia, para Israel ocupar. Mas foi sempre assim, amigos. É preciso saber: 1948 e 49, 1956, 1967, 1973, 1982 no Líbano, 2006 e sucessivamente. Sempre foi isto: matar, aterrorizar para que as populações árabes saiam - e aí temos os seis milhões de palestinos no mundo - para que para que as populações árabes saiam e para que o terreno fique vago para a ocupação colonialista de Israel.
Não somos contra o povo judeu, não somos contra os cidadãos de Israel, somos, sim, a 100% contra o colonialismo, que hoje é israelita, como foi português noutro tempo, como foi francês na Argélia, e que deve ser erradicado. E que o povo, o valente povo palestino, valentíssimo povo palestino, se veja finalmente livre num futuro de paz e de felicidade, que ele bem precisa.
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