Seminário Gaza 2009: Intervenção de Francisco Assis

É com muita honra que aqui estou, pedindo antecipadamente desculpa pois, mal termine este primeiro painel, vou ter que me ausentar. Mas não quis deixar de estar aqui hoje para dar um testemunho de solidariedade e para fazer alguma análise e algum apelo.
Em primeiro lugar, o testemunho de solidariedade para com o Povo Palestiniano. Tenho participado nalgumas iniciativas desta natureza, tendo ao meu lado pessoas com quem divirjo em quase tudo: não temos o mesmo esquema conceptual de abordagem da realidade, não temos a mesma representação política, não partilhamos as mesmas doutrinas, temos profundas divergências em relação aos mais diversos aspectos, mas compreendemos que há momentos e situações que são de tal maneira graves e ponderosos que exigem que nós estejamos todos juntos e presentes, independentemente dessas mesmas divergências. E eu creio que este é um caso claro em que isto se passa e, por isso, essa é a minha razão fundamental para estar aqui e para dar, numa iniciativa desta natureza, a solidariedade que vale o que vale, mas que da minha parte significa a assumpção das minhas responsabilidades cívicas e políticas.
Perante o que se tem passado na Palestina, eu creio que nós não temos o direito de ficar calados. Temos o dever e obrigação de exprimir com toda a veemência a nossa indignação e, antes até de qualquer juízo de natureza política, de abordagem política do problema, há um juízo de natureza moral, há uma abordagem de natureza puramente moral, há uma reacção de natureza puramente moral, que nós não podemos deixar de fazer e, portanto, a minha primeira palavra é sempre a manifestação de uma profunda indignação pelo que se passa e de uma profunda solidariedade para quem é vitima do tudo aquilo que se está a passar. Do que não há dúvida nenhuma, é que nós não estamos perante uma relação simétrica no conflito israelo-palestiniano, nós não estamos perante dois povos que estão neste momento a sofrer os mesmos males. Nós estamos perante dois povos que estão em situações bastante diferentes: os palestinianos estão numa situação muito diferente e muito pior do que os israelitas e estão-no há longas décadas.
Olhando para a história da humanidade, raramente encontramos um povo que ao longo de tanto tempo tivesse sofrido um martírio tão constante como infelizmente tem afligido os palestinianos, obrigados a sair das suas casas, a abandonar as suas aldeias e as suas cidades, obrigados a partir para uma errância que parece não ter fim e, por todos os lados por onde vão passando, sempre num estatuto de segunda classe, sempre sem os mesmos direitos que os outros, sempre com o estatuto de absoluta subalternidade. Esta situação é absolutamente inaceitável. E quando, de tempos a tempos, nos confrontamos com situações ainda piores, ainda mais agudas, como aquela da recente agressão em Gaza, a verdade é que também não devemos perder de vista que apenas se trata, infelizmente, de uma actualização, porventura ainda mais dramática e mais trágica, do que tem sido o sofrimento constante, um sofrimento perene por parte dos Palestinianos.
E, por isso, nós temos a obrigação, todos quantos desempenhamos actividade política e nos batemos por alguns princípios e desempenhamos essa actividade política em função de um conjunto de valores e princípios e, em primeiro lugar, em função do princípio dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana, seja quem for, pertença a que povo pertencer, tenha a história que tiver, nós temos a obrigação de dizer que há hoje, neste momento, no mundo, muito perto de cada um de nós, muito perto da consciência de cada um de nós, um povo que está a ser profundamente violentado todos os dias nos seus direitos mais elementares. E é por isso que diria que eu também nunca estive na Palestina mas, de certa forma, nós estamos todos os dias na Palestina, temos a obrigação de estarmos todos os dias na Palestina: estar todos os dias na Palestina significa estar todos os dias solidários com essas pessoas, solidários com os Palestinianos; e essa é a primeira questão que aqui queria colocar.
A segunda questão é dizer-vos que, apesar de tudo, é preciso ter alguma esperança em relação a este processo. Eu creio que nós, quando nos dedicamos à vida pública, temos que viver sempre neste equilíbrio instável, entre o realismo, que às vezes pode levar ao desespero, que às vezes pode levar a perda completa de qualquer esperança, e alguma esperança, alguma confiança em que as coisas possam mudar. E, para que as coisas possam mudar, aqueles que têm responsabilidades na vida política internacional, na vida política de cada estado, têm que assumir também, têm que olhar para este conflito de maneira diferente.
Eu creio que o grande factor de esperança neste momento assenta em dois aspectos. Primeiro, eu creio que há da parte da opinião pública internacional - e concordo com a necessidade de sensibilizar permanentemente a opinião pública -, que há da parte da opinião pública internacional, apesar de todas as dificuldades em que essa opinião pública se forme de modo rigoroso e claro, há da parte da opinião pública internacional, uma cada vez maior adesão, não direi a esta causa, mas a esta preocupação. Há cada vez mais gente, há cada vez, por todo o mundo, mais pessoas que têm noção que esta situação é absolutamente intolerável e para isso nem sequer é preciso fazer nenhuma comparação com nenhuma outra tragédia histórica que tenha afectado qualquer outro povo, porque nenhuma tragédia explica outra tragédia, nenhuma tragédia desculpa outra tragédia, e a história não pode ser sempre uma sucessão de tragédias, no fundo a anularem-se uma às outras. Os povos que viveram tragédias e foram vítimas de tragédias não ficam com especiais deveres. Eles não têm que se estar sempre a lembrar do sofrimento absoluto a que foram submetidos como se isso também aumentasse as suas responsabilidades e os seus deveres. Mas também não ficam, naturalmente, com direitos especiais em relação aos outros. Por isso, eu não seguiria por esse caminho de estarmos a fazer permanentemente essa comparação de tragédias. Esta é, de facto, uma tragédia imensa, uma tragédia enorme que afecta concretamente aquele povo e é em relação a ela que me parece que há hoje cada vez mais, a nível internacional, a noção de que é necessário combatê-la, é necessário prestar apoio, que é necessário estar atento e pressionar aqueles que têm responsabilidades políticas - porque é ai que, em última instancia, o problema se poderá ou não resolver -, no sentido de terem um outro olhar para o conflito israelo-palestiniano. Essa é uma das razões para ter alguma esperança, porque as opiniões públicas, quando de facto aparecem, quando surgem com força, têm uma enorme capacidade de influenciar, têm hoje uma enorme capacidade de conduzir à alteração de vários acontecimentos políticos.
Em segundo lugar, eu acredito que a eleição do presidente Obama, tenha vindo alterar substancialmente os dados políticos da questão a nível internacional. Independentemente da posição que cada um possa ter em relação ao papel dos Estados Unidos no Mundo, há uma coisa que é evidente: que esse papel é relevante e absolutamente fundamental. Os EUA podem e devem ter, para o melhor e para o pior, um papel essencial na resolução do conflito israelo-palestiniano e na resolução dos vários conflitos que existem e que marcam hoje a vida do Médio Oriente e que não se resumem a este. Este é, porventura, o mais explosivo e mais mediático, mas não é naturalmente este o único que marca hoje a vida no Médio Oriente e há portanto um outro olhar por parte do EUA, uma outra actuação por parte dos EUA e eu acredito que possa vir a contribuir fortemente para alterar a situação. Ora, nos últimos anos, os EUA estiveram prisioneiros de uma visão em relação ao Médio Oriente – que, aliás, foi a visão em relação ao mundo todo -, assente numa associação entre a pior das correntes neo-liberais e a pior das correntes neo-conservadoras, uma visão, aliás, absolutamente ideológica, a mais ideológica das visões que marcaram a abordagem da política internacional nas últimas décadas e que conduziu à abordagem mais primária que se poderia imaginar em relação aos problemas do Médio Oriente. E, portanto, os EUA foram uns intervenientes absolutamente negativos em todo aquele processo. Essa mistura de neo-liberalismo e de neo-conservadorismo, essa associação, depois, à direita evangélica, ao republicanismo evangélico, num determinado momento entendeu que também tinha por missão histórica associar-se aos sectores mais retrógrados e mais reaccionários do estado de Israel, para actuarem com preponderância numa lógica de hegemonia absoluta em relação a toda aquela região. Essa associação de todos esses aspectos levou, de facto, a uma mistura explosiva e de consequências absolutamente desastrosas para toda aquela área. Ora isso mudou com a eleição do presidente Obama e isso permite-nos ter alguma esperança. Há alguns sinais na sua intervenção e é em relação a esses sinais que eu quero ver essa esperança de que as coisas devem mudar.
Em primeiro lugar, é preciso olhar sem excessivos preconceitos ideológicos, sem excessivos preconceitos de qualquer ordem, para toda aquela região e é preciso que a diplomacia volte a actuar e volte a desenvolver a sua actividade. Foi, aliás, um conservador, um homem republicano, o antigo Secretário de Estado James Baker, que afirmava, há uns anos atrás, que a diplomacia existe para nós falarmos com aqueles que são nossos inimigos, porque se nós só tivéssemos amigos, não tínhamos praticamente necessidade de actividade diplomática. A diplomacia existe, fundamentalmente, para nós podermos dialogar com aqueles com que temos divergências, para podermos aproximar posições, para podermos superar alguns muros que nos afastam. E é, por isso, fundamental que os EUA relancem o diálogo e se disponibilizem para falar com todos os países e com todos os regimes daquela zona do mundo - com o Irão com a Síria e com os demais países da região. E eu tenho visto no presidente Obama e na administração Obama uma vontade nova de estabelecer, de facto, um novo relacionamento político com aquela região. É verdade que há toda uma história, é verdade que há toda uma memória que, de alguma maneira, cria dificuldades de parte a parte a esse diálogo. Mas, meus caros amigos, uma das artes da política também é, muitas vezes, saber pôr a memória um pouco de lado. A memória e a história são fundamentais, mas muitas vezes o excesso de história, o excesso de memória, conduzem à não resolução dos problemas. É preciso que o excesso de história e o excesso de memória não levem a posições absolutamente rígidas e cristalizadas. E eu creio que poderá, aqui, estar-se na eminência de um novo caminho, um caminho de aproximação no sentido real. Ninguém pede aos americanos, aos iranianos ou aos sírios que passem todos, naturalmente, a aderir às mesmas teses, a organizar-se segundo os mesmos modelos. Aliás, esse foi o grande erro anterior, era uma espécie de projecção de um determinado modelo de organização política e económica numa outra região Isso é completamente absurdo. Agora, o que se pede é que haja capacidade para dialogar, para buscar alguns entendimentos, que são de facto fundamentais para alterar o xadrez político regional.
Em segundo lugar, a União Europeia deve assumir também, de uma forma diferente, as suas responsabilidades. A União Europeia tem hoje uma participação activa naquela região, a União Europeia tem uma participação, nomeadamente, no financiamento daquela região e deve exercer as suas responsabilidades políticas. Felizmente, para nós europeus, temos hoje uma situação diferente daquela que tínhamos há uns anos atrás ou há algumas décadas atrás. Muitos países olhavam para nós como antigas potências colonizadoras e nós tínhamos esse lastro, essa memória profundamente negativa. Infelizmente, o mau comportamento dos EUA em épocas mais recentes, levou a que, de certa maneira, a Europa passasse a ser vista e passasse ela a ter um capital de que não dispunha no rescaldo de descolonização de todos esses países. E a verdade é que a União Europeia pode ter hoje aqui um papel mais activo; e ter um papel mais activo, no meu ponto de vista, resume-se a uma simples coisa: a União Europeia tem a obrigação moral de pressionar as autoridades israelitas no sentido de elas alterarem radicalmente as suas posições. É uma afirmação simples, mas é uma afirmação incisiva e é uma afirmação muito clara, porque até hoje não tem havido da parte do estado de Israel, nos últimos anos não tem havido por parte do estado de Israel, uma atitude consentânea com aquilo que muitas vezes tem sido o discurso dos seus principais dirigentes de criação de um novo estado palestiniano, de criação de condições para que os dois estados possam coexistir. A manutenção da política dos colonatos, a expansão permanente dos colonatos que tem vindo a suceder, a forma como tem vindo a ser construído o muro que, verdadeiramente, não garante apenas o isolamento dos dois povos, mas impede uma vida autónoma, em dignidade, dos palestinianos, que praticamente não lhes garante a autonomia naquilo em que ela é, desde logo vital, que é o ponto de vista económico, a situação de total indignidade em que vivem a maior parte dos palestinianos que têm de se deslocar e que têm de ultrapassar essas barreiras e esperam horas e horas para poder ir vender os seus produtos, que esperam horas e horas para poder receber um tratamento hospitalar a que têm direito como qualquer ser humano em qualquer parte do mundo, que têm de estar ali nas piores circunstâncias, sujeitos sistematicamente a comportamentos que evidentemente os aviltam e põem em causa a sua dignidade em aspectos fundamentais - tudo isso são situações que em nada concorrem para a resolução do problema e que, depois, fazem surgir em muitas pessoas essa ideia de que não há, por parte do estado de Israel, nenhuma vontade de o resolver. E, portanto, a União Europeia tem a obrigação de pressionar o estado de Israel e eu creio que nós todos podemos ter aqui algum papel. A União Europeia não é uma entidade abstracta, a União Europeia somos nós todos, são vários órgãos, são vários países, a União Europeia somos nós todos enquanto elementos constitutivos desses mesmos países e que nos devemos ver representados nesses órgãos e portanto há aqui um papel que a União Europeia deve ter.
E, por último, queria também dizer-vos o seguinte: já aqui há dias, numa outra reunião, tive oportunidade de dizer isto, que é o argumento - que me parece particularmente inaceitável e que tenho muitas vezes ouvido ser utilizado aqui em Portugal - que é o argumento de opor e, de certa maneira, até de assumir uma certa superioridade do estado de Israel em relação aos estados vizinhos por uma razão muito simples que é, na óptica desses analistas, o modelo de organização democrática do estado de Israel por oposição a outros países que não se organizam da mesma forma. Não entrando aqui na discussão de saber se assim é ou não é, tendo embora uma posição clara sobre isso – e, evidentemente, que o estado de Israel é um estado em que funcionam os tribunais, há um pluralismo de posições e de pontos de vista, há uma imprensa livre - não entrando nessa discussão, devo dizer-vos que esse argumento é um dos argumentos mais cínicos que se pode utilizar. Porque admitir que um estado, mesmo que ele fosse modelarmente democrático, mesmo admitindo que nós estamos perante uma democracia modelar no seu funcionamento, admitir que um estado, só pela circunstância de ser uma democracia, pode “democraticamente” tomar a decisão de pôr em causa, de aviltar outro povo, é um dos argumentos mais cínicos e mais inaceitáveis. Porque a democracia tem limites: o limite da democracia é o limite do respeito pelos direitos humanos, o limite da democracia é precisamente o respeito pelos direitos essenciais dos outros e, infelizmente, isso não tem sido absolutamente garantido naquela região.
Meus caros amigos, era apenas esta reflexão que hoje aqui queria fazer convosco. Não estivemos, todos que aqui estamos, muitas vezes juntos no passado, não sei se iremos estar juntos muitas vezes no futuro, mas devo dizer-vos que eu hoje fiquei muito honrado - não direi que tenha ficado muito alegre, porque o motivo por que estamos hoje aqui não é motivo para criar alegria a ninguém - mas senti-me muito honrado por estar acompanhado de quem estou, numa luta que eu acho que é muito importante e numa causa que é hoje das mais justas precisamente por ser das mais trágicas com que nós nos podemos confrontar.
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