Seminário Gaza 2009: Conclusões

 1. A luta do povo da Palestina é única na história humana recente. Há mais de sessenta anos refugiado na sua própria terra, forçado ao exílio, ao isolamento e à privação, nenhum outro povo foi privado, durante a história recente e de forma tão prolongada e radical, do reconhecimento internacional do seu direito à dignidade, à justiça e ao seu próprio estado. O conflito israelo-palestino não é linear nem simétrico, opõe um ocupante e um ocupado, uma potência que oprime e explora, e um povo que é reprimido e reclama o seu direito à autodeterminação e à independência, dentro das fronteiras de um estado soberano e viável. O reconhecimento pleno dos direitos nacionais do povo palestino, o direito à criação de um estado nos territórios ocupados por Israel desde 1967, é um direito inalienável, inscrito na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos dos Homem. Por isso, a questão palestina está no centro da agenda internacional, interroga os fundamentos basilares do direito e da legalidade internacional. O modo como for tratado pela comunidade internacional ditará, em muito larga medida, o destino da paz no mundo.
2. Os episódios de violência aguda e brutal, como o ocorrido na faixa de Gaza, entre os dias 27 de Dezembro e 18 de Janeiro, constituem, nesse quadro, actualizações de um drama quotidiano e de um sofrimento perene. Na Margem Ocidental e em Gaza, em Jerusalém ou em Rafah, o povo palestino enfrenta, todos os dias, uma política sistemática, empreendida de forma meticulosa, que visa aniquilar os fundamentos da sua existência nacional e provocar, em última análise, o êxodo total e irreversível da sua terra ancestral. A destruição de casas e de campos de cultivo, a confiscação e anexação de terras, o alargamento contínuo dos colonatos, a destruição de toda a infra-estrutura económica, os postos de controlo e as restrições ao movimento e à circulação de pessoas e bens, a construção do muro de separação, os assassinatos selectivos, as prisões e a tortura são marcas da paisagem quotidiana de todos os palestinos, feridas abertas, todos os dias, em homens, mulheres e crianças, numa guerra permanente e calculada imposta a todo o povo, perante a passividade e o silêncio tantas vezes cúmplice da comunidade internacional.
3. A brutal ofensiva militar lançada pelo exército israelita contra a população da faixa de Gaza não pode ser desligada desse contexto de miséria e opressão vivido, desde há décadas, em todos os territórios ocupados. Ela visou, ao mesmo tempo, uma população submetida a dezanove meses de um  bloqueio desumano que transformou a faixa de Gaza numa imensa prisão a céu aberto. Foi sobre uma população logo tempo privada de tudo, desde alimentos, medicamentos ou combustíveis a produtos comuns como papel ou fraldas de crianças, que uma das mais poderosas máquinas de guerra do mundo se lançou, de forma cruel e indiscriminada. As estatísticas desses vinte e dois dias de chumbo - mais de 1300 mortos, cerca de 5300 feridos, na sua maior parte mulheres e crianças, um sexto dos edifícios destruídos – não reflectem a dimensão do desastre humanitário e o seu impacto presente e futuro sobre toda a população. Tratou-se, uma vez mais, de uma guerra lançada com o apoio e a colaboração activa dos Estados Unidos da América e de uma boa parte da comunidade internacional, que assistiu, silenciosa e cúmplice, ao avolumar da tragédia. E foi, como sempre no passado, a resistência heróica do povo palestino que impôs a derrota política ao estado de Israel, forçado a retirar as suas tropas sem que qualquer dos seus anunciados objectivos tivesse sido alcançado.
4. Como esta recente ofensiva militar contra a população da faixa de Gaza veio largamente comprovar, a escalada de agressividade por parte de Israel torna cada vez mais difícil e complexa a possibilidade de alcançar uma paz justa e duradoura. A cada nova investida, com o seu cortejo de mortes e destruição, reforçam-se os sentimentos de frustração, raiva e desespero entre o povo palestino, agravados pela persistente passividade da comunidade internacional, prisioneira de uma falsa e perversa equidistância, quando não de uma activa cumplicidade com os crimes e a ocupação. Ao mesmo tempo, por cada dia que cada, a expropriação de terras, a destruição de campos de cultivo, o alargamento dos colonatos torna cada vez mais difícil a possibilidade de criação, nos territórios ocupados, de um Estado Palestino viável e soberano.
5. No actual contexto, a divisão grave entre as forças do movimento de resistência nacional palestino é um elemento de enorme gravidade na situação e que tem contribuído, em larga medida, para a agressividade da política de Israel. A criação da Organização de Libertação da Palestina como única e legítima representante da causa nacional do povo palestino constituiu uma conquista histórica que importa preservar. É, por isso, absolutamente fundamental ultrapassar as divergências e divisões e refazer a unidade entre todas as organizações da resistência palestina em torno dos objectivos históricos da luta do seu povo: a retirada de Israel dos territórios palestinos ocupados em 1967, a criação de um Estado Palestino soberano e viável com Jerusalém Leste como capital, e o regresso e a justa compensação para os refugiados palestinos. Esse processo tem que incluir todas as organizações representativas do movimento nacional palestino, entre elas, o Hamas, força maioritária no parlamento palestino constituído em resultado de eleições que a comunidade internacional considerou livres e justas. Ao mesmo tempo, à comunidade internacional cumpre reconhecer, sem alibis nem pré-condições, os representantes legítimos do povo palestino – nos mesmos exactos termos em que são reconhecidos os governos e instituições do estado de Israel – para, em conjunto, promover um caminho que conduza a uma paz justa, conforme com a legalidade internacional, e duradoura. Perante o impasse do processo negocial e a prolongada e sistemática política de ocupação com todo o seu cortejo de injustiça e sofrimento, a resistência constitui um direito sagrado e inviolável do povo da Palestina e uma afirmação básica e elementar de liberdade.
6. O drama do povo palestino reclama a solidariedade de todos os povos e de todos os cidadãos. A derrogação das mais elementares normas do direito internacional, a humilhação constante dos direitos nacionais de um povo, o desrespeito de princípios básicos dos direitos humanos não suporta a neutralidade ou a equidistância. A solidariedade é, por isso, um dever de cidadania, um imperativo ético que interroga todos os cidadãos, e todos os movimentos cívicos, locais ou nacionais. Ela deve, por isso, mobilizar todos os que, independentemente das suas diferenças, políticas, religiosas ou outras, se reconhecem na necessidade imperiosa de fazer valer o primado da liberdade e da dignidade da pessoa humana, contra a injustiça e a opressão. O movimento de solidariedade em torno da causa nacional palestina pode assumir múltiplas formas e expressões, mas não deve afastar-se daquela que é a raiz mais funda do conflito, a razão do sofrimento infligido àquele povo: o fim da ocupação dos territórios palestinos da Margem Ocidental, incluindo Jerusalém Leste, e da faixa de Gaza, e a criação de um estado independente, soberano e viável. No imediato, e em relação à situação dramática que se vive na faixa de Gaza, todos os recursos políticos e humanitários devem ser orientados para:
                i) a garantia de um cessar fogo efectivo por parte de Israel, com o fim do bloqueio e a abertura das fronteiras à livre circulação de pessoas, ajuda humanitária e produtos comerciais;
                ii) a recuperação das infra-estruturas económicas de modo a reduzir a situação de dependência extrema da população em relação à ajuda humanitária;
                iii) uma investigação independente sobre a prática eventual de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade por parte do exército de Israel, destacando-se, neste ponto, a iniciativa em curso na Europa, tendente à criação de um Tribunal Russel para a Palestina;
                iv) a resolução dos conflitos no seio do movimento nacional palestino.
7. No plano político, o movimento de solidariedade com o povo palestino deve intervir, por múltiplas formas, em ordem ao esclarecimento e informação da opinião pública sobre as raízes históricas do conflito, a justeza das aspirações nacionais daquele povo, e as falsificações, mentiras e deturpações veiculadas amiúde nos órgãos de comunicação social. Deve denunciar de forma firme e consistente a cumplicidade e o apoio activo que os Estados Unidos da América têm dado à política de ocupação e aos atropelos continuados da legalidade internacional perpetrados por Israel, assim como as ambiguidades e algumas não poucas cumplicidades da União Europeia e de alguns países europeus em especial, relativamente ao conflito. Deve ainda ter presente que a resolução da questão palestina, causa central dos povos árabes, é inseparável do fim da ingerência externa na região, da ocupação americana do Iraque e do Afeganistão e das ameaças sobre o Irão, da retirada de todas as tropas estrangeiras, e da criação de um espaço de paz e cooperação livre de armas nucleares. O movimento de solidariedade deve privilegiar a acção consistente junto dos órgãos de poder nacionais e das instituições europeias, de modo a que, na medida das suas altas responsabilidades em toda a situação, tais instâncias desenvolvam uma actividade útil e positiva que favoreça e garanta o exercício pleno dos direitos do povo palestino. A criação de um espaço mediterrânico de paz e cooperação, condição fundamental para a estabilidade e o desenvolvimento na Europa, requer como condição necessária e fundamental a resolução justa da questão palestina. Nesse particular, o movimento de solidariedade deve pugnar para que, no respeito pelo direito internacional e os compromissos assumidos, a União Europeia e os países europeus, ponham fim ao comércio de armas com Israel, suspendam a cooperação enquanto durar a ocupação dos territórios palestinos – e em particular o processo de aprofundamento das relações aberto antes dos bombardeamentos sobre Gaza – e cumpram rigorosamente as disposições dos acordos de associação, em especial, quanto à proibição da importação de produtos oriundos dos colonatos.
[Relator: Carlos Almeida]
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