Saramago e a Palestina: uma evocação no 10º aniversário da sua morte
Há 10 anos o povo palestino perdeu, em José Saramago, um amigo e defensor incondicional dos seus direitos. Militante de longa data da causa palestina, esteve na génese da criação do MPPM e presidiu à Mesa da Assembleia Geral até ao seu falecimento. São conhecidas as suas posições públicas sobre a questão palestina e a forma desassombrada como as expressava, sem se inibir de denunciar quem considerava que era responsável pela situação do povo palestino ou que lhe estava a faltar com a solidariedade que lhe seria devida.
Evocamos hoje a memória de José Saramago, divulgando a mensagem que enviou à assembleia fundadora do MPPM, em 23 de Fevereiro de 2008. Reconhece-se neste texto o seu estilo empenhado e lúcido. Não se nota que foi escrito há 12 anos.
«O processo de extorsão violenta dos direitos básicos do povo palestino e do seu território por parte de Israel prossegue perante a cumplicidade ou a indiferença da mal-afamada comunidade internacional. O escritor israelita David Grossmann, cujas críticas ao governo do seu país têm vindo a subir de tom, escreveu num artigo recente que Israel não conhece a compaixão. Já o sabíamos. Com a Tora como pano de fundo, ganha pleno significado aquela terrível e inesquecível imagem de um militar judeu partindo à martelada os ossos da mão a um jovem palestino capturado na primeira intifada por atirar pedras aos tanques israelitas. Menos mal que não a cortou.
Nada nem ninguém, nem sequer organizações internacionais que teriam essa obrigação, como é o caso da ONU, conseguiram, até hoje, travar as acções mais do que repressivas, criminosas, dos sucessivos governos de Israel e das suas forças armadas contra o povo palestino. Não parece que a situação tenda a melhorar. Pelo contrário. Enfrentados à heróica resistência palestina, os governos israelitas alteraram certas estratégias iniciais suas, passando a considerar que todos os meios devem ser utilizados, mesmo os mais cruéis, mesmo os mais arbitrários, desde os bombardeamentos indiscriminados aos assassinatos selectivos, para dobrar e humilhar a já lendária coragem do povo palestino, que todos os dias vai juntando parcelas à interminável soma dos seus mortos e todos os dias os ressuscita na pronta resposta dos que continuam vivos.
Estamos hoje aqui para receber informação actualizada sobre a situação na Palestina. Não esperamos que seja mais propícia ao optimismo do que a informação de que dispúnhamos ontem. Apoiando o povo palestino, sabemos que estamos do lado justo, o que, como sabemos, nem sempre é boa recomendação nos tempos que vão correndo. Digo que apoiamos o povo palestino, e nada é mais certo. Porém uma perplexidade me perturba, e provavelmente a outros dos presentes: que significa apoiar o povo palestino? Apoiar a Al Fatah? Apoiar a Hamas? Que interesses estaremos prejudicando se apoiarmos a um e não a outro?
Não basta estar informados dos factos brutos. Não perceberemos nada ou quase nada do que está sucedendo, se não tivermos a uma interpretação fiável de certos acontecimentos desconcertantes que têm posto a claro, pela dimensão pública que assumem, as contradições e os conflitos que opõem as duas organizações políticas e militares palestinas.
Conheço a resposta a estas minhas perplexidades: apoiemos o povo palestino, e isso deverá bastar-nos. Em princípio, sim, mas que fazemos se o próprio povo palestino está dividido?
A todos desejo um bom trabalho, um debate esclarecedor, e que a Palestina, ao fim do dia de hoje, esteja mais perto de nós ou nós dela. Pelo coração, sim, mas também pela inteligência, pelo saber.
José Saramago
Lanzarote, 23 de Fevereiro de 2008»