Saramago e a Palestina: Breve evocação no centenário do seu nascimento

José Saramago, figura maior da vida cultural portuguesa, cidadão desta terra e deste mundo, foi um homem totalmente comprometido com o seu tempo, em particular com a luta dos homens e dos povos pela emancipação de todas as formas de exploração e opressão. O drama do povo palestino, a sua causa nacional, a sua heróica luta contra a ocupação e pela liberdade, teve em José Saramago uma voz empenhada, corajosa e sentidamente solidária.

A voz de Saramago — de alcance mundial pela arte da palavra, a clarividência do pensamento e o desassombro das posições — há muito se fazia ouvir em prol de duas maiores e incindíveis causas da humanidade: a libertação e a paz.

Saramago sempre quis juntar a sua voz lúcida, calorosa, firme, à de outros portugueses em iniciativas que abriram caminho à criação do MPPM — Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente — e, sobretudo, em defesa da vida e do futuro do povo palestino, heróico e mártir.

Foi assim com o abaixo-assinado «Não ao Muro de Sharon» (2004); com o documento fundador do MPPM (2005), em que se condenava «a imposição, pela força, de soluções unilaterais, todas as formas de terrorismo, tanto o terrorismo de estado como qualquer outro, todas as ocupações militares ilegítimas»; com o apelo contra a agressão israelita ao Líbano e a guerra (2006); com a moção de repúdio aos 40 anos de ocupação da Margem Ocidental do Jordão depois da Guerra dos Seis Dias (2007); com a denúncia da invasão israelita da Faixa de Gaza (2008) e com tantas outras iniciativas.

Ao assinalar os cem anos do seu nascimento, evocamos estas, entre inúmeras contribuições de uma vida tão plena de solidariedade e criatividade como foi a de José Saramago, para que, em Portugal e no Mundo, fosse mais bem defendida e tivesse a maior projecção a justíssima causa dos direitos inalienáveis do povo palestino e da paz no Médio Oriente.

Saramago sobre a Palestina

José Saramago comprometeu e empenhou a autoridade da sua voz desassombrada e o seu renome mundial para condenar os crimes do regime israelita, colocando-se corajosamente ao lado da causa nacional e da luta heróica do povo palestino contra a ocupação e pela liberdade.

Em Março de 2002, José Saramago integrou uma delegação do Parlamento Internacional de Escritores que visitou a Palestina a convite de Mahmoud Darwish. A delegação incluía também o escritor norte-americano Russell Banks, o realizador norte-americano Oliver Stone, o prémio Nobel da Literatura e dissidente nigeriano Wole Soyinka, e os escritores Vincenzo Consolo (Itália), Bei Dao (China), Juan Goytisolo (Espanha), e Christian Salmon (França).

Saramago esteve em Ramala com Arafat e Darwish, de quem era amigo e de quem escreveu no seu Caderno: «Ler Mahmud Darwish, além de uma experiência estética impossível de esquecer, é fazer uma dolorosa caminhada pelas rotas da injustiça e da ignomínia de que a terra palestina tem sido vítima às mãos de Israel».

Em torno desta viagem, impressionado com o que viu, Saramago proferiu declarações que causaram forte polémica: «O que é preciso fazer é dar o alarme em todo o mundo para dizer que o que acontece na Palestina é um crime que podemos deter. Podemos compará-lo com o que aconteceu em Auschwitz. É a mesma coisa, embora mantenhamos na mente as diferenças de tempo e de lugar».

O colaborador da BBC na Cisjordânia, José Vericat, entrevistou então José Saramago em Ramala. Eis um extracto da entrevista:

«BBC — Que propósito teve a sua visita à Palestina?

Saramago — A intenção tem sido a de enviar aqui uma delegação de membros do Parlamento Internacional de Escritores para manifestar solidariedade aos narradores, poetas, dramaturgos palestinos.
BBC — O que pode ter este conflito palestino-israelense de particular?

Saramago — Vamos ver: Isto não é um conflito. Poderíamos chamá-lo conflito se se tratasse de dois países, com uma fronteira e dois estados, com um exército cada um. Aqui trata-se de uma coisa completamente distinta: Apartheid. Ruptura da estrutura social palestina pela impossibilidade de comunicação.

BBC — Que pensa de Israel?

Saramago — Um sentimento de impunidade caracteriza hoje o povo israelense e o seu exército. Eles converteram-se em financiadores do holocausto. Com todo o respeito pela gente assassinada, torturada e sufocada nas câmaras de gás. Os judeus que foram sacrificados nas câmaras de gás quiçá se envergonhariam se tivéssemos tempo de dizer-lhes como estão se comportando seus descendentes. Porque eu pensei que isto era possível; que um povo que tem sofrido deveria haver aprendido de seu próprio sofrimento. O que estão fazendo com os palestinos aqui é no mesmo espírito do que sofreram antes.
Eu creio que eles não conhecem a realidade. Todos os artigos que apareceram contra mim têm sido escritos por pessoas que não foram nunca saber como vivem os palestinos, quer dizer, eles não querem saber o que está passando aqui. Seria lógico que estivessem aqui os capacetes azuis (soldados da ONU). Mas o governo israelense não o permite. O que me indigna, e não posso calar-me, é a covardia da comunidade internacional que se deixa calar. Nem sequer falo dos Estados Unidos, do lobby judeu, de tudo isso que é mais que conhecido. Falo da União Europeia. Europa, o berço da arte, da grande literatura, tudo isso. E todos assistindo a isto, a este desastre, e ninguém intervém.

BBC — Parece-lhe pertinente a analogia entre o sofrimento dos palestinos hoje, e o sofrimento dos judeus que teve lugar durante o regime nazista e em particular nos campos de concentração?

Saramago — Isso de Auschwitz foi, evidentemente, uma comparação a propósito. Um protesto formulado em termos habituais, quiçá não provocasse a reacção que tem provocado. Claro que não há câmaras de gás para exterminar palestinos, mas a situação na qual se encontra o povo palestino é uma situação concentracionária: Ninguém pode sair de seus povoados.
Eu o disse e dito está. Mas, se a vocês incomoda muito isso de Auschwitz, eu posso substituir essa palavra, e em lugar de dizer Auschwitz digo crimes contra a humanidade. Não é uma questão de mais vítimas ou menos vítimas; não é uma questão de mais trágico ou menos trágico: É o fato em si. Isto que está acontecendo em Israel contra os palestinos é um crime contra a humanidade. Os palestinos são vítimas de crimes contra a humanidade cometidos pelo governo de Israel com o aplauso de seu povo.»

Em Julho de 2006, José Saramago assinou, com John Berger, crítico de arte e ensaísta; Noam Chomsky, linguista e professor do MIT, e Harold Pinter, dramaturgo e Prémio Nobel de Literatura, uma carta dirigida aos principais jornais internacionais em que assume uma posição firme sobre a ameaça que impende sobre a nação palestina.

Endossaram a carta, entre outros, Arundhati Roy, escritora indiana e vencedora do Booker Prize; Naomi Klein, jornalista e escritora canadiana; Harold Zinn, historiador americano; Tariq Ali, escritor paquistanês; Eduardo Galeano, escritor uruguaio; Gore Vidal, escritor, dramaturgo e argumentista americano.

O teor da carta é o seguinte:

O mais recente capítulo do conflito entre Israel e a Palestina começou quando forças israelitas raptaram dois civis, um médico e o seu irmão, na Faixa de Gaza – um incidente escassamente relatado por toda a parte, excepto na imprensa turca. No dia seguinte, os Palestinos fizeram prisioneiro um soldado israelita e propuseram uma troca negociada por prisioneiros detidos pelos israelitas: há cerca de 10.000 nas prisões israelitas.

Que este “rapto” tenha sido considerado um ultraje, ao passo que a ocupação militar ilegal da Margem Ocidental e a apropriação sistemática do seus recursos naturais, muito especialmente da água, pelas forças de defesa israelita sejam consideradas factos da vida, lamentáveis mas reais, é típico da política de dois pesos e duas medidas, repetidamente utilizada pelo Ocidente, perante a sorte que se abateu sobre os Palestinos, na terra que lhes foi atribuída por acordos internacionais, no decurso dos últimos 70 anos.

Hoje, aos ultrajes seguem-se ultrajes; mísseis improvisados cruzam-se com mísseis sofisticados. Estes últimos encontram, normalmente, os seus alvos nos locais onde vivem aglomerados os pobres e deserdados à espera daquilo que, em tempos, se chamou Justiça. Ambos os tipos de mísseis despedaçam os corpos de uma forma horrível – quem, senão os chefes militares, pode esquecer isto, por um momento que seja?

Cada provocação e contra-provocação é contestada e apregoada. Mas os argumentos, acusações e ameaças subsequentes, tudo serve como manobra de diversão para distrair a atenção de um persistente estratagema militar, económico e geográfico, cujo objectivo político é nada menos que a liquidação da nação Palestina.

Esta realidade tem de ser proclamada, alto e bom som, porque aquele estratagema, apenas em parte declarado e frequentemente encoberto, está a avançar rapidamente nos nossos dias e, na nossa opinião, tem de ser persistente e permanentemente desmascarado – e resistido.

Meussy, França, 19 de Julho de 2006

John Berger, Noam Chomsky, Harold Pinter, José Saramago

Não podendo estar presente na Assembleia Geral constituinte do MPPM, em Fevereiro de 2008, José Saramago enviou uma mensagem que continua, hoje, plena de actualidade:

«Israel e os seus derivados

O processo de extorsão violenta dos direitos básicos do povo palestino e do seu território por parte de Israel prossegue perante a cumplicidade ou a indiferença da mal-afamada comunidade internacional. O escritor israelita David Grossmann, cujas críticas ao governo do seu país têm vindo a subir de tom, escreveu num artigo recente que Israel não conhece a compaixão. Já o sabíamos. Com a Tora como pano de fundo, ganha pleno significado aquela terrível e inesquecível imagem de um militar judeu partindo à martelada os ossos da mão a um jovem palestino capturado na primeira intifada por atirar pedras aos tanques israelitas. Menos mal que não a cortou.

Nada nem ninguém, nem sequer organizações internacionais que teriam essa obrigação, como é o caso da ONU, conseguiram, até hoje, travar as acções mais do que repressivas, criminosas, dos sucessivos governos de Israel e das suas forças armadas contra o povo palestino. Não parece que a situação tenda a melhorar. Pelo contrário. Enfrentados à heróica resistência palestina, os governos israelitas alteraram certas estratégias iniciais suas, passando a considerar que todos os meios devem ser utilizados, mesmo os mais cruéis, mesmo os mais arbitrários, desde os bombardeamentos indiscriminados aos assassinatos selectivos, para dobrar e humilhar a já lendária coragem do povo palestino, que todos os dias vai juntando parcelas à interminável soma dos seus mortos e todos os dias os ressuscita na pronta resposta dos que continuam vivos.

Estamos hoje aqui para receber informação actualizada sobre a situação na Palestina. Não esperamos que seja mais propícia ao optimismo do que a informação de que dispúnhamos ontem. Apoiando o povo palestino, sabemos que estamos do lado justo, o que, como sabemos, nem sempre é boa recomendação nos tempos que vão correndo. Digo que apoiamos o povo palestino, e nada é mais certo. Porém uma perplexidade me perturba, e provavelmente a outros dos presentes: que significa apoiar o povo palestino? Apoiar a Al Fatah? Apoiar a Hamas? Que interesses estaremos prejudicando se apoiarmos a um e não a outro?

Não basta estar informados dos factos brutos. Não perceberemos nada ou quase nada do que está sucedendo, se não tivermos a uma interpretação fiável de certos acontecimentos desconcertantes que têm posto a claro, pela dimensão pública que assumem, as contradições e os conflitos que opõem as duas organizações políticas e militares palestinas.

Conheço a resposta a estas minhas perplexidades: apoiemos o povo palestino, e isso deverá bastar-nos. Em princípio, sim, mas que fazemos se o próprio povo palestino está dividido?

A todos desejo um bom trabalho, um debate esclarecedor, e que a Palestina, ao fim do dia de hoje, esteja mais perto de nós ou nós dela. Pelo coração, sim, mas também pela inteligência, pelo saber.
José Saramago

Lanzarote, 23 de Fevereiro de 2008»

Saramago com o MPPM

Sempre que a sua ocupada agenda o permitia, Saramago associava-se a iniciativas públicas do MPPM.

Em 7 de Setembro de 2004, presidiu ao «Encontro de Informação sobre a Actual Situação na Palestina» em que era oradora principal a escritora e poetisa palestina Hanan Awwad e que reuniu duas centenas de pessoas na Casa do Alentejo, em Lisboa.

No Encontro abordou-se a situação dos presos políticos palestinos detidos em prisões israelitas e a construção do designado “Muro de Sharon”, já condenada pelas mais elevadas instâncias internacionais. Mas mereceu especial atenção a situação do Presidente Yasser Arafat, há longo tempo cercado na sua residência de Ramala, e cujo viver quotidiano fora objecto do mais recente livro de Hanan Awwad, «A Palestina é o Princípio». Durante o Encontro, estabeleceu-se uma comunicação telefónica com o Presidente Arafat, para lhe testemunhar a solidariedade dos presentes.

A Mesa do Encontro compreendia ainda: Aquilino Ribeiro Machado, Frei Bento Domingues, Carlos Carvalho, Issam Besseisso, João Cunha Serra, Jorge Cadima e Silas Cerqueira.

Em 4 de Junho de 2007, José Saramago participou numa «Sessão de Intervenção», na Casa do Alentejo, em Lisboa, inserida num conjunto de iniciativas que, em todo o Mundo, apelavam à Liberdade para a Palestina e à Paz para o Médio Oriente, exigindo a saída de Israel dos Territórios Palestinianos ocupados desde a Guerra dos Seis Dias (5 a 11 de Junho de 1967).

A sessão foi presidida por Mário Ruivo e Isabel Allegro de Magalhães e contou com intervenções da poetisa, investigadora e historiadora palestina Faiha Abdulhadi, de Silas Cerqueira, do MPPM, e de Abdullah Abdullah, presidente da Comissão Política do Conselho Legislativo Palestino.

José Saramago encerrou a sessão indignando-se com a indiferença com que o Mundo assiste à opressão do povo palestino e pressagiou: «Um dia se fará a história do sofrimento do povo palestino e ela será um monumento à indignidade e covardia dos povos».

As mais de duas centenas de pessoas presentes aprovaram por aclamação uma Moção em que se apelava à opinião pública nacional para que «saiba nesta data dizer não à continuação dos 40 anos de ocupação estrangeira ilegal e desumana dos territórios palestinos e promover as mais diversas tomadas de posição e iniciativas de solidariedade moral, política, material com a justa luta de libertação do povo da Palestina» e se apelava ao Governo português para que, ao assumir a Presidência da União Europeia, consiguisse «levar a U.E. a ter uma posição própria e diferenciada em questão de tão grande importância para a Europa e para a Paz mundial, de modo a reconhecer plenamente e tratar com o legítimo governo de unidade nacional palestino».

No dia 26 de Maio, pelas 21 horas, no Teatro Cinearte / “A Barraca”, José Saramago participou numa sessão pública de solidariedade evocativa dos 60 anos da Nakba palestina em que era convidado especial Mohammad Barakeh, deputado ao Knesset e presidente da Hadash – Frente democrática pela Paz e Igualdade). Além das suas intervenções, a sessão contou ainda com a participação de Isabel Allegro Magalhães, Randa Nabulsi, Miguel Portas, Alan Stoleroff, Bruno Dias e Mário Ruivo. Foram lidos poemas de Hanan Awwad e Mahmud Darwish por Maria do Céu Guerra e João D’Ávila.

Em Novembro de 2008, o MPPM promoveu um conjunto de iniciativas em torno do Dia Internacional de Solidariedade com o Povo da Palestina. Assim, em 18 de Novembro, realizou-se na Casa do Alentejo, em Lisboa, uma «Sessão Pública de Solidariedade com o Povo Palestino em Luta por uma Independência Soberana e uma Paz Justa». Com presidência de José Neves, Vice-Presidente do MPPM, intervieram: José Manuel Pureza, Carlos Carvalho, Frei Bento Domingues, Embaixadora Randa Nabulsi e José Saramago.

Nessa noite, José Saramago escreveu no seu blogue:

«Inundação
Venho da Casa do Alentejo onde participei numa sessão de solidariedade com a luta do povo palestino pela sua plena soberania contra as arbitrariedades e os crimes de que Israel é responsável. Deixei lá uma sugestão: que a partir de 20 de Janeiro, data da tomada de posse de Barack Obama, a Casa Branca seja inundada de mensagens de apoio ao povo palestino e em que se exija uma rápida solução do conflito. Se Barack Obama quer libertar o seu país da infâmia do racismo, faça-o também em Israel. Desde há sessenta anos que o povo palestino vem sendo friamente martirizado com a cumplicidade tácita ou activa da comunidade internacional. É tempo de acabar com isto.»

O MPPM orgulha-se de ter contado, na sua actividade, com o contributo único e activo de José Saramago em prol de um movimento de solidariedade com a causa do povo palestino mais forte e interveniente. Ele esteve na génese da criação do MPPM e presidiu à Mesa da Assembleia Geral até ao seu falecimento.

Hoje, mais do que nunca, o exemplo, a lição, a obra e o legado de José Saramago são da maior actualidade e exigência. Ele vive e viverá na continuidade da sua — e nossa — luta pela libertação do povo palestino, por uma humanidade liberta da opressão, por um mundo em paz.

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