Por que a RTP não deve estar em Tel Aviv: 2. Israel não é uma democracia

Amiúde, Israel é glorificado como a única democracia do Médio Oriente, um oásis democrático num deserto autoritário e ditatorial. Mas será isto verdade, ou será antes um mito?

Israel é, por norma, enquadrado como uma democracia de estilo ocidental, um regime parlamentar pluripartidário com a devida separação de poderes, onde há lugar à liberdade e igualdade de todos os seus cidadãos, sendo (calorosamente) acolhido pelos seus pares ocidentais.

As análises que elevam Israel ao estatuto democrático focam as características «genéticas» partilhadas com os regimes ocidentais com o intuito de evidenciar o seu suposto carácter democrático; contudo, teimam obstinadamente em esquecer ou ignorar a limpeza étnica em que assentou a criação do Estado em 1948.

Após constituir-se sobre a extinção do outro, Israel transcreve essa realidade para o seu enquadramento jurídico, afirmando-se como um sistema político de faceta democrática para a sua população judaica e de discriminação e apartheid para os cidadãos palestinos.

Os palestinos de Israel serão sempre discriminados e tratados como «inimigo interno» (o que ainda recentemente ficou bem patente na campanha eleitoral).

Desde a declaração de independência, em 14 de Maio de 1948, Israel já adoptou e produziu mais de 60 leis discriminatórias em favor da população judaica e em detrimento da não judaica, conferindo carácter jurídico ao tratamento diferenciado e preferencial.

O tratamento diferenciado inicia-se no acto de constituição do Estado de Israel, que submete de imediato à lei marcial os 150 000 palestinos que, apesar da campanha de limpeza étnica, haviam permanecido no interior das fronteiras do novo Estado.

Assim, os palestinos cidadãos do novo Estado ficarão durante quase duas décadas (de 1948 a 1966) com fortes restrições de mobilidade, limitações ao direito de reunião, expressão e manifestação, enquanto os cidadãos judeus são abrangidos pelo direito civil.

Neste período, simultaneamente, Israel começa a legislar activamente quanto ao confisco da terra e bens palestinos, não se coibindo de complementar a acção legislativa com deportações, para fora das fronteiras do Estado, de palestinos que permaneciam em aldeias ainda não destruídas.

A acção legislativa é direccionada em torno de quatro temas primordiais na restrição da liberdade dos cidadãos palestinos e do seu crescimento demográfico, que «ameaça» o carácter judaico do Estado. São eles:

Acesso à terra

A Lei de Aquisição da Terra, de 1953, expropria pelo menos 130 000 hectares pertencentes a refugiados palestinos e, conjuntamente com a Lei do Fundo Nacional Judaico do mesmo ano, destina a quase totalidade da terra de Israel ao Fundo Nacional Judaico, proibindo-se a venda ou arrendamento de qualquer parcela aos palestinos.

Em 1960, a exclusão dos palestinos do acesso à terra é reforçada pela Lei da Administração da Terra, que define a composição do Conselho de Administração da Terra, com metade de membros do governo e outra metade de membros do Fundo Nacional Judaico. Nesse mesmo ano, a interdição é reforçada com o monopólio da terra em organismos judaicos e a proibição de venda a terceiros não judeus, fundamentada na Lei Básica da Terra.

No ano de 1965, a Lei do Planeamento e Construção Nacional excluirá a presença de palestinos do Comité de Planeamento e Construção, garantindo, no entanto, a presença de grupos judaicos.

Em 1981, a Lei das Terras Públicas abrirá caminho aos despejos dos beduínos no deserto de Naqab/Negev.

No ano de 2010, a Lei de Aquisição da Terra para Propósitos Públicos estende a confiscação de terras pertencentes aos palestinos. No mesmo ano, a Lei da Autoridade de Desenvolvimento Pública do Negev expropria terras pertencentes a comunidades beduínas para aí contruir comunidades judaicas.

Actualmente o Fundo Nacional Judaico, a Autoridade de Desenvolvimento e o Estado de Israel possuem 93% da terra, que é de uso exclusivo para a população judaica.

Permissão de construção / direito à habitação

As leis da década de 1960 que regem o acesso à terra — Lei da Administração da Terra e Lei do Planeamento e Construção Nacional — também definem parâmetros de construção e políticas nacionais de habitação que não prevêem a alocação de verbas ou autorizações de construção para os palestinos.

Para além disso, o Estado intervém na destruição de comunidades já existentes e na expropriação dos seus terrenos, como é o caso da Lei das Terras Públicas, da Lei da Aquisição da Terra para Propósitos Públicos e da Lei da Autoridade de Desenvolvimento Público do Negev.

Para restringir ainda mais o acesso dos palestinos ao mercado imobiliário, a Lei dos Comités de Admissão, de 2011, estipula que as comunidades poderão efectuar uma pré-selecção dos habitantes e compradores de imóveis. Estes comités, presentes em 42% das comunidades israelitas, barram a entrada aos não judeus, impossibilitando o acesso dos palestinos ao mercado de habitação em quase metade do país.

Desde 1948 até aos dias de hoje, Israel estabeleceu quase 600 comunidades judaicas no país e zero comunidades para os cidadãos palestinos. Embora a população palestina tenha uma taxa de crescimento demográfico superior à dos restantes grupos, nunca obteve por parte de Israel licenças para construir novos centros habitacionais.

Nazaré, a cidade com o maior número de palestinos, em termos relativos e absolutos, triplicou o seu número de habitantes desde 1948, mas nunca obteve permissão para aumentar a sua área, ao contrário da comunidade judaica da Alta Nazaré, que foi  criada pelo Estado para estrangular a cidade palestina. Desde 1948 esta comunidade judaica triplicou o seu espaço geográfico, expropriando terrenos palestinos e impedindo o crescimento da comunidade palestina.

Actuação na área económica estatal

Em 1950 é aprovada a Lei da Propriedade dos Ausentes, com vista a confiscar as propriedades e bens materiais pertencentes aos palestinos convertidos em refugiados ou deslocados dentro de Israel, impedidos uns e outros de retornar aos seus lares e de retomar a posse dos seus bens. Todos os bens confiscados (habitações, terrenos agrícolas, gado, colheitas, bens materiais, lojas e instituições financeiras) serão distribuídos por organismos estatais, com destaque para a Custódia da Propriedade dos Ausentes, que leiloará os imóveis e outros bens aos colonos que continuamente chegam do continente europeu.

A Lei da Absorção de Soldados Dispensados (2008 e 2010) favorece este grupo quanto a empréstimo à habitação, bolsas de estudo e acesso privilegiado a emprego. Na verdade, os benefícios atribuídos aos cidadãos que cumpriram o serviço militar são mais uma forma de discriminação da população palestina, visto que em Israel o serviço militar é obrigatório para os judeus, enquanto os palestinos, por razões óbvias, o rejeitam.

O Estado, enquanto decisor político-económico-social, é um factor e agente de desigualdade e disparidade estrutural.

Proporcionalmente, o Estado investe três vezes mais em escolas judaicas do que em escolas palestinas. O currículo leccionado nas escolas é imposto pelo Estado e de índole parcial e enviesada, apagando por completo a história da comunidade palestina, que não é representada nos manuais escolares.

As taxas de pobreza, extrema e relativa, são mais acentuadas na população palestina. A parcela do Estado Social dedicada a cidadãos palestinos é 30% inferior aos gastos com os judeus. O montante destinado às crianças palestinas é 52,1% inferior comparativamente com o grupo judaico.

Apenas 5% dos cargos públicos são ocupados por palestinos.

Os montantes orçamentais destinados às municipalidades de maioria palestina são, ano após ano, flagrantemente inferiores, despoletando uma situação crónica de carência de serviços municipais e de subdesenvolvimento dessas localidades.

Cidadania, direitos políticos, enquadramento jurídico

Em 1950, o recém-criado Estado de Israel aprova a Lei do Retorno e a Lei da Cidadania, que concede a qualquer judeu em qualquer parte do mundo o direito a imigrar para Israel e tornar-se cidadão do Estado. A aprovação destas leis barra, simultaneamente, a possibilidade de os refugiados palestinos regressarem às casas de onde há pouco haviam sido expulsos.

A Lei do Knesset (parlamento), aprovada em 1958 e com alterações significativas em 1985, estabelece actualmente que será impedido de se candidatar ao Knesset qualquer candidato que negue a essência democrática e judaica do Estado. Os visados, evidentemente, são os candidatos palestinos e não sionistas.

Em 1980, o Acto de Fundamentação da Lei prevê que, em caso de inexistência de legislação em determinada matéria, será dada precedência à lei judaica, garantindo a esta um papel primordial no ordenamento jurídico israelita. No ano que segue, a Lei da Interpretação concede ao hebraico a hegemonia na interpretação de leis.

A Lei do Knesset de 1994 estabelece que na sua sessão de abertura serão lidos excertos da Declaração de Independência de Israel e enfatizada a relação exclusiva entre o Estado e o povo judeu.

Em 2003, a Lei da Reunificação Familiar impossibilita os palestinos cidadãos de Israel de aí viverem com os seus cônjuges oriundos dos territórios ocupados da Cisjordânia ou Gaza. Ao mesmo tempo, concede aos restantes cidadãos o direito de viverem em Israel com os seus cônjuges estrangeiros.

Em 2008, é aprovada uma emenda à da Lei dos Procedimentos Criminais que isenta a polícia israelita de gravar por vídeo ou áudio os interrogatórios com os palestinos, abrindo a porta a métodos violentos e à tortura, que acompanham a quase totalidade das detenções palestinas.

A Lei dos Conselhos Regionais, de 2009, formaliza a suspensão das eleições no Negev/Naqab, impedindo até hoje os eleitores palestinos de escolherem os seus dirigentes municipais.

Em 2011, a Lei da Nakba impede organizações públicas e académicas de assinalarem o dia da «catástrofe» palestina, sob pena de pesadas deduções no orçamento a elas destinado.

No mesmo ano, é aprovada uma emenda à Lei da Cidadania tendo em vista a possibilidade de revogar a cidadania aos palestinos.

No ano de 2014, na perspectiva das eleições legislativas do ano seguinte, é aprovada uma lei que, com o intuito de reduzir a presença de partidos palestinos, aumenta de 2% para 3,25% a percentagem de votos necessários para eleger deputados para o Knesset.

Em 2018, é aprovada a Lei do Estado-Nação, reforçando estrondosamente o carácter de apartheid do Estado, ao inscrever na lei que «o Estado de Israel é a pátria histórica do povo judeu […] sendo o direito à auto-determinação exclusivo do povo judeu», o único que aí goza de plenos direitos. A língua árabe perdeu o estatuto de língua oficial e os habitantes não judeus de Israel — sobretudo os palestinos, que constituem cerca de 20% da população — são remetidos para uma condição de cidadãos de segunda classe.

A escalada legislativa contra a população palestina não conheceu pausas nem limites desde 1948 até ao presente. O apartheid posto a nu pela infame Lei do Estado-Nação nada mais é do que o  culminar de um longo processo.

Logo nos primeiros anos de vida de Israel, ainda os palestinos se debatiam com a lei marcial e já o Estado havia legislado no sentido de condicionar o acesso à terra, confiscada e vendida a colonos, de impedir a recuperação dos bens dos refugiados palestinos, vendidos em hasta pública, e de excluir a presença dos palestinos em mecanismos de decisão política.

Este percurso não decorreu sem a tenaz resistência dos palestinos, que perante o saque das suas terras e a destruição das suas casas se ergueram em históricos protestos. Em 1976, no auge da política de «judaização» da Galileia, onde os palestinos eram a maioria, foi marcada uma enorme manifestação para o dia 30 de Março, que se tornou conhecido como o Dia da Terra. Os palestinos protestavam contra a expropriação da sua terra, e a terra foi regada com sangue palestino: Israel respondeu com o  assassínio de seis manifestantes.

No que diz respeito à participação em eleições, existem por todo o território de Israel milhares de palestinos cujo direito de voto é severamente restringido. Nos seus lugares de residência não existem locais de voto (ao contrário do que acontece nos colonatos ilegais dos territórios ocupados da Cisjordânia e Jerusalém Leste, em que aos colonos judeus são disponibilizados locais para votarem).

Esses palestinos vivem em aldeias que por vezes até precedem a criação de Israel mas às quais, por não serem reconhecidas pelo Estado, são negados os direitos mais básicos (vias de comunicação, água, electricidade, saneamento, organismos públicos, escolas, equipamentos sociais e instituições de saúde).

Tal sucede por essas aldeias se localizarem em espaços em que o Estado pretende construir conjuntos de habitações exclusivamente judaicas.

Também os palestinos de Jerusalém Oriental vêem o direito de voto restringido. Embora formalmente se encontrem abrangidos pelo direito israelita, após a anexação (ilegal) da cidade por Israel, em 1980, não lhes é assegurado o direito de voto por não serem cidadãos de pleno direito do Estado (tal como os 20 000 sírios que vivem nos Montes Golã ocupados).

Israel, que impõe aos palestinos, incluindo os seus cidadãos palestinos, um autêntico regime de apartheid, quer apresentar-se como uma democracia. Mas um Estado que privilegia uma parte dos cidadãos e discrimina outros com base na sua etnia e religião, um Estado que não reconhece a todos direitos iguais, não é um Estado democrático. Israel não é uma democracia!

O MPPM dirige-se à RTP afirmando: Israel não merece acolher o Festival da Eurovisão. Não se deve permitir que Israel utilize os artistas e as estações de televisão que participarão no evento como instrumento de branqueamento e legitimação internacional da sua política discriminatória e repressiva, da ocupação, colonização e anexação anunciada dos territórios palestinos ocupados.

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