Parecer jurídico justifica embargo total a Israel
Foi recentemente tornado público um importante parecer jurídico [1] sobre as consequências jurídicas para os “Estados terceiros” — todos, excepto Israel e Palestina — das violações do direito internacional cometidas por Israel ao manter a sua presença no Território Palestino Ocupado (TPO) — Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, e Faixa de Gaza — à luz do Parecer Consultivo [2]do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), de 19 de Julho de 2024, e da subsequente Resolução [3] da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13 de Setembro de 2024, que confirma este parecer consultivo e aplica as suas conclusões.
Frisando que tanto o parecer do TIJ como a resolução da ONU — que Portugal votou favoravelmente — dão ênfase à ilegalidade da presença sobrepondo-se à ilegalidade da actuação de Israel no TPO, e que o Estado, o exército e a sociedade israelitas estão indissociavelmente ligados à ocupação, sendo impossível distinguir que relações contribuem ou não para reforçar a presença ilegal de Israel no TPO, este parecer jurídico conclui que da aplicação da resolução da ONU decorre a obrigação de um embargo abrangente às relações com Israel e, designadamente, ao fim do Acordo de Associação UE-Israel.
1. Ilegalidade da presença de Israel no TPO
O parecer, da autoria do Prof. Ralph Wilde, da Faculdade de Direito do University College de Londres, começa por demonstrar que a presença de Israel no TPO é, por si só, ilegal, como uma violação do direito internacional da autodeterminação e do direito internacional sobre o uso da força. Trata-se de uma ilegalidade “existencial” — a própria existência da presença de Israel é ilegal. Esta ilegalidade é distinta da ilegalidade “baseada na conduta”, que também se verifica na forma como Israel se comporta através da sua presença no TPO.
2. Consequência da ilegalidade: a nulidade
O carácter ilegal da presença de Israel no TPO significa necessariamente que, de um modo geral, tudo o que Israel fez e faz no território — incluindo, no caso de certas partes da Cisjordânia, as decisões que envolvem todo o espectro de questões de administração territorial, desde a questão da propriedade da terra até às questões do património cultural — seja qual for o seu fundamento, é juridicamente inválido.
3. Principal consequência da ilegalidade para Israel: exigência de retirada imediata
A ilegalidade da presença de Israel no TPO tem várias consequências jurídicas para Israel. O presente parecer centra-se na consequência principal: a ilegalidade deve cessar, o que, neste caso, significa que Israel deve pôr termo à sua presença. O TIJ considerou que a presença israelita no TPO deve cessar “o mais rapidamente possível”. A Assembleia Geral estipulou que deve terminar “sem demora” e “o mais tardar 12 meses” a partir de 13 de Setembro de 2024.
4. A ligação inextricável entre a presença no TPO e o Estado e sociedade israelitas em geral
A presença israelita no TPO está de tal modo ligada ao Estado israelita, incluindo as suas forças armadas, e à economia e sociedade israelitas, incluindo a vida cultural, desportiva e educativa, que é impossível desagregar de forma significativa as relações que estão, de uma forma ou de outra, ligadas à presença israelita no TPO e as relações que estão totalmente livres dessa ligação. Consequentemente, quando se trata das obrigações que os Estados terceiros e a UE devem cumprir nessas relações em consequência do carácter ilegal da presença, essas obrigações têm de abordar as relações na sua generalidade.
5. Deveres jurídicos dos Estados terceiros e da UE
Os Estados terceiros e a UE têm três deveres legais de reprimir as violações do direito internacional cometidas por Israel ao manter a sua presença no TPO. São eles:
5.1. Um dever positivo de pôr termo à presença ilegal de Israel no TPO, através de meios individuais e conjuntos, cooperativos, e uma obrigação conexa de cooperar com a ONU para pôr em prática quaisquer modalidades promulgadas pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança para assegurar o fim da presença de Israel no TPO e a plena realização do direito palestino à autodeterminação.
O direito internacional não prescreve nenhuma forma específica de acção, quer individualmente quer em cooperação com outros Estados terceiros e organizações internacionais. Uma opção consiste em adoptar sanções contra os israelitas, incluindo funcionários do governo, envolvidos na condução da presença ilegal. Estas sanções podem incluir o congelamento de contas bancárias e de activos no estrangeiro, bem como restrições de viagem.
5.2. Um dever negativo de não reconhecer como legal a existência e a continuação da presença ilegal de Israel no TPO.
A obrigação geral de não reconhecer a presença israelita como legalmente válida inclui também o não reconhecimento como válidas das reivindicações justificativas de Israel, expressas ou implícitas, para a sua presença no TPO, qualquer que seja o seu tipo. Tais reivindicações incluem a autodefesa e o gozo da soberania. Estes são alguns exemplos das implicações práticas destas obrigações:
— No plano diplomático, nomeadamente no estabelecimento de relações com Israel e no restabelecimento e manutenção de missões diplomáticas, nada fazer que presuma a legalidade da presença de Israel no TPO.
— Nos planos económico e comercial, não estabelecer relações convencionais que impliquem o reconhecimento de um direito israelita de actuar em relação à totalidade ou a parte do TPO, nem realizar acordos que reforcem a presença israelita no TPO.
— Os Estados terceiros e a UE devem adoptar um embargo total e recíproco contra Israel em matéria de comércio (incluindo armas), finanças, investimento, ciência, tecnologia, audiovisual, cultura (incluindo o turismo), educação e desporto, incluindo mas não limitado a um embargo aos produtos provenientes dos colonatos, uma vez que as dimensões económicas da presença israelita no TPO estão inextricavelmente ligadas à economia israelita em geral e todos os negócios económicos e comerciais com Israel “dizem respeito”, de uma forma ou de outra, à totalidade ou a partes do TPO, e todos esses negócios “podem” reforçar a sua presença.
— Adoptar medidas positivas para impedir relações comerciais ou de investimento que contribuam para a manutenção da presença ilegal de Israel no TPO e não reconhecer qualquer exploração económica por parte de Israel dos recursos existentes no TPO.
— Tomar medidas positivas para garantir que os nacionais e outros intervenientes não estatais, incluindo empresas e outras entidades jurídicas sob a sua jurisdição, não reconheçam a situação criada pela presença ilegal de Israel no TPO. Para tal, devem ser proibidas as seguintes actividades:
1. Todas as viagens a Israel, nomeadamente para efeitos de negócios, turismo, actividades culturais e desportivas, educação e outras actividades académicas, incluindo investigação, intercâmbios universitários, participação em conferências, emprego, residência e serviço nas forças armadas.
2. Todas as trocas comerciais (incluindo de armas), investimentos e quaisquer outras formas de financiamento, transferência de tecnologia e prestação de apoio caritativo, com o Estado israelita e entidades israelitas, incluindo universidades.
3. Todas as outras formas de colaboração com o Estado de Israel e entidades israelitas, tais como a colaboração científica e tecnológica, jogos desportivos, eventos culturais, intercâmbios universitários e parcerias.
5.3. Um dever negativo de não ajudar ou prestar assistência à manutenção da presença ilegal de Israel no TPO
Os Estados estão proibidos de prestar toda e qualquer ajuda ou assistência a Israel para manter a sua presença no TPO. O que está em causa é a existência da presença em si, e não apenas a forma como está a ser conduzida. Dada a impossibilidade de distinguir de forma significativa entre essa ajuda/assistência que acabaria por apoiar, de uma forma ou de outra, a presença israelita no TPO e as outras actividades de Israel, incluindo dentro de Israel, não pode haver qualquer ajuda/assistência a Israel. Por conseguinte, é necessário um embargo total a todas as formas de ajuda/assistência a Israel, em termos gerais.
No que se refere à questão da ajuda e assistência militar em particular, dada a forma como a condução da presença no TPO está inextricavelmente ligada ao funcionamento do sistema militar israelita em geral, não pode haver qualquer ajuda ou assistência às forças armadas de Israel. Além disso, dado que é a presença militar no TPO, por si só, que é ilegal, a proibição tem de abranger todos os elementos da ajuda que apoiam os militares israelitas, e não apenas a ajuda que abrange questões como as armas que podem ser e estão a ser utilizadas para perpetrar violações do direito humanitário internacional.
No que se refere ao comércio, ao investimento e às relações científicas, tecnológicas, culturais, educativas e desportivas, é necessário, tal como no caso da obrigação de não reconhecimento, aplicar um embargo total ao comércio (incluindo armas), às finanças, ao investimento, às relações científicas, tecnológicas, audiovisuais, culturais (incluindo o turismo), educativas e desportivas, que funcione reciprocamente, contra Israel em geral (incluindo, mas não se limitando, aos colonatos), a fim de garantir que o comércio, o investimento e as relações científicas, tecnológicas, culturais, educativas e desportivas não acabem por contribuir para a manutenção da presença ilegal israelita no TPO.
Os Estados terceiros devem exercer a sua jurisdição nacional para regular os seus próprios cidadãos e todos os outros actores não estatais, incluindo empresas e outras entidades, na sua jurisdição territorial, a fim de os impedir de prestar qualquer ajuda ou assistência à presença israelita no TPO. Para o efeito, é necessária a mesma proibição acima referida no contexto da obrigação de não reconhecimento.
6. Direitos jurídicos dos Estados terceiros e da UE para invocar a ilegalidade da presença de Israel no TPO
Dado que as normas violadas pela existência da presença de Israel no TPO — o direito à autodeterminação e a proibição de agressão — têm um estatuto erga omnes, i.e. de aplicação universal, todos os Estados e a UE têm o direito legal de invocar a natureza ilegal desta presença e de apelar a Israel para que lhe ponha imediatamente termo.
Têm também o direito legal de invocar quaisquer violações por parte de outros Estados terceiros dos deveres de supressão mencionados em 5.2. e 5.3. (as obrigações de não reconhecer ou ajudar ou assistir a presença ilegal de Israel), e de exigir igualmente que essas violações cessem imediatamente.
Estes direitos pertencem a todos os Estados individualmente e podem ser exercidos individual e colectivamente, incluindo, no caso dos Estados da UE, através da própria UE.
7. Implicação para o Acordo de Associação UE-Israel
Quando o Acordo de Associação UE-Israel foi adoptado em 2000, a atenção predominante na UE centrava-se apenas na forma como Israel conduzia a ocupação, e não na ilegalidade da própria ocupação. Quando o foco passa para a ilegalidade existencial, como é agora exigido pelo Parecer Consultivo do TIJ e pela Resolução da Assembleia Geral da ONU, está em causa uma ilegalidade mais fundamental e abrangente.
Além disso, a existência de uma relação complexa e inextricável entre todas as facetas do Estado, da economia e da sociedade israelitas e a presença no TPO, torna impossível identificar as áreas em que a cooperação é possível sem reconhecer, ou ajudar e prestar assistência, à presença ilegal. Por conseguinte, os deveres 5.2. e 5.3. implicam a impossibilidade de uma cooperação de carácter geral, antes exigem a adopção de um embargo completo e recíproco contra Israel em matéria de comércio (incluindo armas), finanças, investimentos, ciência, tecnologia, audiovisual, cultura (incluindo o turismo), educação e desporto.
O Acordo de Associação UE-Israel é, portanto, fundamentalmente incompatível com este novo entendimento da verdadeira natureza do carácter ilegal da presença israelita no TPO. Em especial, a maior parte das suas disposições são agora incompatíveis com os deveres jurídicos 5.2. e 5.3., nomeadamente os que abrangem o comércio livre, a cooperação científica e tecnológica, a cooperação económica, a cooperação em matéria audiovisual e cultural, a informação e a comunicação e as questões sociais.
O Acordo de Associação UE-Israel deve, por conseguinte, ser denunciado, a fim de harmonizar as acções dos Estados da UE e da própria UE com as suas obrigações em matéria de direito internacional.
[1] https://www.ucl.ac.uk/laws/sites/laws/files/ralph_wilde_icj_opt_ao_thirdstateseu_legal_opinion.pdf
[2] https://mppm-palestina.org/content/mppm-sauda-parecer-historico-do-tribunal-internacional-de-justica-que-confirma-ilegalidade
[3] https://mppm-palestina.org/content/por-esmagadora-maioria-ag-da-onu-exige-retirada-de-israel-dos-territorios-ocupados-no-prazo