«Os EUA e Israel espezinham os palestinos e a Palestina», por Sylvain Cypel

A cena é simbólica: o presidente americano Donald Trump revela o seu «plano do século» unicamente na presença do primeiro-ministro israelita, Benyamin Netanyahu, e na ausência dos principais interessados, os palestinos A verdade é que o plano viola os seus direitos mais elementares, apesar de serem reconhecidos internacionalmente.

A revelação pelo presidente dos EUA, Donald Trump, na terça-feira, 28 de Janeiro, do «acordo do século» que supostamente conduziria israelitas e palestinos a uma «paz global» não foi surpresa para ninguém. O seu conteúdo tinha sido gradualmente revelado nas suas linhas gerais, nomeadamente por Jared Kushner, genro de Donald Trump e principal autor deste plano, juntamente com o embaixador israelita em Washington, Ron Derner, durante um colóquio no Barém em Junho de 2019. Como observou o Haaretz, o acordo «foi escrito de forma a que os palestinos o rejeitassem. Talvez fosse esse o plano» [1].

A leitura da imprensa popular e a audição das rádios israelitas na quarta-feira mostrou uma sociedade israelita vivendo um momento de euforia geral, acompanhada de um sentimento de hiperpoder e impunidade, como talvez não tivesse voltado a conhecer desde a vitória militar de Junho de 1967 e a conquista dos territórios palestinos, egípcios e sírios. Com Trump, o direito internacional foi remetido à condição de velharia obsoleta, e é por isso que os israelitas gostam tanto dele.

Este plano surge após dois anos de total falta de comunicação entre, por um lado, a Casa Branca e o governo israelita e, por outro, Autoridade Palestina (AP), que supostamente representaria o seu terceiro signatário. Aliás, antes da sua divulgação, Trump, sem surpresa, convidou para Washington apenas Benyamin Netanyahu e o seu concorrente na cena interna israelita, o líder da oposição (general) Benny Gantz.

WHO CARES?

Quanto aos palestinos, não foram consultados para nada sobre o este assunto. Quando chegar o momento, eles serão convidados a pronunciar-se sobre este plano israelo-americano. Se o aceitarem, ainda bem. Se o rejeitarem, melhor ainda, porque pagarão o preço. Who cares? Como escreveu Michael Koplow, presidente de um think tank judeu progressista americano, o Israel Policy Forum, «O Plano Trump é um teatro do absurdo». Todo o processo tem sido conduzido desde o início como uma cooperação americano-israelita destinada a impor aos palestinos um diktat congeminado na ausência deles, contra eles.

O conteúdo do plano responde inequivocamente a todas as expectativas do campo colonial israelita. Nenhum dos cerca de 230 colonatos no território ocupado é desmantelado. Não se antevê nenhum verdadeiro Estado palestino: um território dividido em oito regiões separadas umas das outras na Cisjordânia (nada está previsto para o futuro territorial de Gaza, para além da concessão no deserto de Negev de duas mini-zonas de desenvolvimento industrial e agrário), formando este conjunto mini-bantustões em torno das principais cidades, segundo o desígnio (e desenho) das autoridades israelitas, etc. Tudo neste plano vai ao encontro apenas das ambições de Israel. A fim de não interferir na «continuidade territorial» israelita, seriam construídos pontes e túneis (sob controlo israelita, sem dúvida) para ligar esses bantustões. Enfim, aos olhos dos israelitas, o principal foi alcançado: o plano avaliza a possibilidade de anexar imediatamente o Vale do Jordão na sua totalidade e outras partes da Cisjordânia localizadas ao redor dos grandes blocos de colonatos. Estas anexações já aparecem nos mapas fornecidos pela administração Trump.

No total, Israel apodera-se de 35% a 38% da Cisjordânia. O «acordo do século» oferece generosamente aos palestinos uma Cisjordânia fragmentada e definhada em 15% da área original da Palestina. Os pormenores deste plano são negociáveis durante quatro anos, mas não as suas linhas-mestras. Se os palestinos recusarem — já o fizeram —, estas anexações serão ainda mais fáceis para Israel. Netanyahu já se comprometeu com isso várias vezes. Benny Gantz, o seu adversário, apoia entusiasticamente a ideia. E estas anexações gozam de um vasto apoio entre a população judaica israelita.

UMA COLONIZAÇÃO DORAVANTE LEGAL

Neste plano, Jerusalém permanece obviamente a capital apenas do Estado de Israel, tendo os palestinos de se contentar com uma capital «na sua proximidade». Quanto ao futuro dos refugiados, seria criado um sistema de «compensações», sem mais pormenores, e sem que nenhum deles fosse autorizado a retornar, nem mesmo aos territórios palestinos actualmente ocupados, onde Israel preservará o seu domínio unilateral sobre questões de «segurança».

Em contrapartida de todos estes presentes de Trump, Israel deveria a prazo desmantelar os seus «colonatos ilegais». Para que conste, em Fevereiro de 2017 uma lei do parlamento havia aprovado a «legalização» da quase totalidade dos chamados colonatos «selvagens» ou «ilegais», já que haviam sido construídos «de boa fé»… Além disso, se os palestinos por acaso aceitassem o plano, Israel deveria comprometer-se a não construir colonatos no território a eles destinado, durante os quatro anos de transição, sendo claro que o território anexado por Israel estará aberto ao desenvolvimento de uma colonização agora «legal» aos olhos de Washington.

ADESÃO À ORGANIZAÇÃO SIONISTA MUNDIAL?

Israel teve finalmente de aceitar que os palestinos possam chamar ao seu território desmilitarizado, com fronteiras internas e externas controladas por Israel e sem diplomacia autónoma, «Estado da Palestina» (o plano pretende estar de acordo com uma «solução realista de dois Estados»). A configuração do Estado proposto por Trump corresponde exactamente ao que os israelitas há muito chamam «menos do que um Estado». Sem surpresa, porém, esta declaração de independência palestina estaria sujeita à boa vontade de Israel. Está estipulado que a Autoridade Palestina deve, entretanto, ter tratado da questão do Hamas, a fim de demonstrar a sua «clara rejeição do terrorismo». Caso contrário, o Estado residual que lhe é proposto não seria uma realidade.

Netanyahu, confirmando que este Estado nunca verá a luz do dia, acrescentou que a AP também deveria reconhecer Israel como um Estado judeu. Se acedesse a este pedido, pode-se imaginar que Israel também exigiria que a AP solicitasse a adesão à Organização Sionista Mundial…

Para reequilibrar este plano mirífico, é oferecida aos palestinos uma sedutora paz económica nos termos desde sempre preferidos por Netanyahu. Com efeito, se os palestinos aceitarem o diktat israelo-americano, beneficiarão de uma ajuda financeira de 50 mil milhões de dólares (45,48 mil milhões de euros) ao longo de dez anos, destinada a apoiar «as economias dos palestinos e dos Estados árabes vizinhos», incluindo 5 mil milhões de dólares (4,54 de mil milhões de euros) para criar um «corredor» ligando a Cisjordânia a Gaza. Este maná serviria para compensar o que os palestinos perdem em direitos nacionais.

Em Israel, está em curso há várias semanas um debate sobre as modalidades da anexação dos novos territórios concedidos por Trump. Netanyahu fará isso antes das eleições de 2 de Março ou não? Ele deseja que sim, pois acredita que tal gesto lhe seria tremendamente útil no plano eleitoral, tendo em vista a euforia que invadiu o país. E se o fizer, essa anexação irá além do Vale do Jordão, uma zona árida e escassamente povoada (53 000 palestinos, 8000 colonos israelitas) mas considerada «estratégica» e que representa 22,3% do território da Cisjordânia?

AS PREOCUPAÇÕES DA JORDÂNIA

O seu adversário Gantz há muito que se declarou favorável a isso. Mas o rei Abdullah da Jordânia está muito preocupado com as consequências que tal acto teria para a estabilidade da sua monarquia, mais de 45% de cuja população é de origem palestina. Ele já ameaçou romper o acordo de paz com o «Estado judaico» em caso de anexação [2]. E o exército israelita temeria as consequências potenciais na Jordânia de uma anexação do Vale do Jordão. Além disso, Gantz, que apelidou Trump de «verdadeiro amigo» de Israel e elogiou o seu plano, opõe-se à anexação do Vale do Jordão antes das eleições de 2 de Março. Mas ele já prometeu que logo que seja primeiro-ministro «lançará a sua implementação no dia seguinte». Está tudo dito sobre o estado da cena política israelita, onde os dois protagonistas estão a lutar para saber quem será o beneficiário das futuras anexações.

Um facto que, a propósito, muitas vezes é esquecido. O que se entende por anexação? Os casos de Jerusalém e dos Montes Golã oferecem precedentes esclarecedores sobre o que aconteceria se Israel anexasse novas partes da Cisjordânia. Israel anexou Jerusalém Oriental logo a seguir à guerra de Junho de 1967 e formalizou esta anexação através de uma votação parlamentar em 30 de Julho de 1980, que a consagrou nas «leis básicas» do Estado, que têm valor constitucional. De facto, nos últimos 40 anos, os palestinos que vivem na parte «anexada» de Jerusalém, e que hoje representam 40% da população da cidade, embora residam juridicamente em Israel, embora estejam sujeitos à lei israelita e paguem os seus impostos ao Estado de Israel, nunca foram convidados a votar para o Parlamento israelita.

O mesmo se aplica aos Montes Golã. Quando Israel anexa, anexa a terra e a pedra (que se tornam «judeus»), mas não os humanos que aí habitam, que permanecem desprovidos de quaisquer direitos políticos. Estamos no século XXI… Estas anexações têm pelo menos o mérito da clareza: consagram no direito a segregação entre os nacionais da potência «anexadora» e os anexados.

CATIVAR O ELEITORADO EVANGÉLICO

Na semana passada, Trump quis mostrar-se confiante. Os palestinos?  «Talvez eles reajam negativamente a princípio, mas de facto [o plano] é muito positivo para eles» [3]. Trump, do mesmo modo que imagina que a pressão dos EUA conseguirá forçar o Irão a renegociar um acordo sobre o nuclear militar, pretende levar os palestinos a aceitar o seu plano sob pressão. E, de qualquer forma, este plano visa muito mais cativar o seu eleitorado evangélico do que resolver o conflito israelo-palestino. Até agora, a Autoridade Palestina não deu nenhuns sinais de estar disposta a capitular. Mas Trump não desarma: numa segunda fase, quem sabe?

Na Palestina, porém, este plano é visto como o último prego que fecha a tampa do caixão dos defuntos Acordos de Oslo (Agosto de 1993), que, pelo menos em palavras, e sem se referir a um futuro Estado palestino, promoviam os «direitos legítimos e políticos mútuos» dos dois povos e pretendiam estabelecer entre eles «uma paz justa, duradoura e abrangente, bem como uma reconciliação histórica». Com Trump e Netanyahu, não há mais fingimentos: o seu «acordo do século» oferece aos palestinos apenas um prato de lentilhas. E se o recusarem, será pão seco e água.

A SITUAÇÃO MAIS DIFÍCIL DESDE 1939

Por conseguinte, sem ver exactamente que futuro se lhes apresenta, um número crescente de palestinos deixam de acreditar na viabilidade de uma «solução de dois Estados» que permitiria a existência de um Estado da Palestina viável. A «solução realista de dois Estados» de Trump, sentida pela totalidade dos palestinos como um insulto, coloca a Autoridade Palestina, cujo poder real já é quase inexistente, numa posição definitivamente impossível. Não tem nenhum meio para resistir à política israelita, que todos os dias expropria terras, desloca habitantes e os mantém sob o jugo de uma ocupação militar. A única questão de fundo que se coloca é: qual será a linha política que emergirá da sociedade palestina, quando a sua expressão pública histórica, a OLP, tiver sido esvaziada do seu conteúdo, e a sua ideia central, a «solução de dois Estados», tiver sido definitivamente enterrada? Especular sobre este futuro não tem grande utilidade. Mas é certo que os palestinos se encontram na situação política mais difícil desde 1939, após o esmagamento da sua grande revolta contra o ocupante britânico.

A DISSOLUÇÃO IMPOSSÍVEL DA AUTORIDADE

Entretanto, o que pode a AP fazer? O seu porta-voz, Nabil Abu Rudeineh, sugeriu que se o plano não atender a nenhuma das reivindicações fundamentais dos palestinos quanto aos seus «direitos legítimos, pediremos a Israel que assuma as suas responsabilidades plenas como potência ocupante» [4]. Será que isso significa que a Autoridade Palestina chegaria ao ponto de anunciar a sua dissolução, forçando os israelitas a retomar a gestão dos assuntos civis palestinos, como aconteceu entre 1967 e 1994?

Dissolver a AP sem dúvida colocaria Israel numa posição muito difícil. Mas também apresentaria enormes problemas aos palestinos. Porque a existência desta Autoridade legitima os apoios financeiros internacionais que permitem financiar os salários de centenas de milhares de funcionários públicos palestinos (professores, pessoal hospitalar, etc.), e também as pensões das famílias dos «mártires», as vítimas da luta contra Israel. «Eu não acredito que isso vá acontecer. Seria um erro, uma loucura política», ajuiza Leila Shahid, antiga embaixadora palestina em França e depois na União Europeia. Em vez disso, continua ela, «a verdadeira ameaça expressa por Abu Rudeineh é anular a cooperação de segurança dos órgãos palestinos com as forças israelitas». As autoridades da OLP já votaram várias vezes essa anulação. E a população palestina já a pede há muito tempo. Para Abbas, o último sobrevivente dos fundadores da Fatah, velho, doente e impopular, pôr fim a esta cooperação seria um último combate pela honra, a sua «última bala», diz Leila Shahid.

Mas Abbas sempre se recusou a assiná-la. Motivo: o custo seria muito alto para os palestinos, que certamente enfrentariam restrições muito mais draconianas do que aquelas que já conhecem, especialmente nas suas deslocações — incluindo os seus dirigentes. «Abbas deixaria de poder sair do seu gabinete», dizem os palestinos. Quanto a Trump, certamente poria fim aos últimos escassos financiamentos americanos de que os palestinos ainda beneficiam, e pressionaria a União Europeia a fazer o mesmo. Mas o custo de tal decisão não seria negligenciável para o exército israelita, cujos chefes sabem o quanto a cooperação com as forças de segurança palestinas, pelo menos na Cisjordânia, lhes tem sido útil.

LIGA ÁRABE, NÃO VAI ACONTECER NADA

Dito isto, um alto funcionário palestino, sob condição de anonimato, não acredita em nada na ameaça de ruptura da cooperação de segurança com as forças israelitas. Esta cooperação, diz ele, não serve só para combater o terrorismo islamista, mas também para proteger a AP da sua população, que a despreza. «Os dirigentes palestinos vivem com tanto medo da hostilidade do da sua própria população quanto da dos israelitas», diz ele. Deste ponto de vista, a continuação da cooperação de segurança com Israel é também uma protecção para eles próprios. Porque, acrescenta ele, a primeira consequência do «plano de paz» de Trump é fortalecer entre os palestinos o campo que sempre desconfiou da via diplomática. Trump, diz ele, «oferece uma avenida ao Hamas». No imediato, a visão deste dirigente é de um pessimismo negro. «A Autoridade Palestina pedirá a convocação de uma reunião de emergência da Liga Árabe, que se reunirá e emitirá um comunicado indignado. E depois… e depois nada. Passa-se à ordem do dia.»

Por outro lado, para o futuro, ele quer acreditar que um novo movimento vai emergir entre a população palestina, e talvez mais cedo do que se pensa, o que colocará aos israelitas uma questão identitária muito mais existencial do que todas aquelas que até agora alimentaram os seus medos: a reivindicação da igualdade de direitos. Num país que já tem, entre o mar e o rio Jordão, uma população judaica israelita e uma população palestina numericamente idênticas (6,5 milhões de cada lado), mas onde a segunda não tem os direitos concedidos à primeira, é esta - reivindicação da igualdade de direitos — «um homem, um voto» —que, a longo prazo, poderá apresentar-se como a única opção para sair de uma guerra eterna e da dominação de um povo sobre outro.

[1] Amir Tibon, Noa Landau, «Trump's ‘Deal of the Century’ was written in a way so the Palestinians would reject it. Maybe that was the plan», Haaretz, 27 de Janeiro de 2020.

[2] A Jordânia é o único Estado árabe, além do Egipto, a ter assinado uma paz oficial com Israel.

[3] Ashley Parker, Anne Gearan, Euth Eglash e Steve Hendrix, «Trump is preparing to release his Middle East peace plan, Pence says», The Washington Post, 23 de Janeiro de 2020.

[4] «Trump says he’ll likely release his Middle East peace plan by Tuesday», Al Jazeera, 24 de Janeiro de 2020.


Sylvain Cypel foi membro da chefia de redacção do Le Monde, e anteriormente director do Courrier International. É autor de Les emmurés. La société israélienne dans l'impasse, La Découverte, 2006.

Este artigo foi originalmente publicado no site Orient XXI em 30 de Janeiro de 2020. Tradução do MPPM.

Os artigos assinados publicados nesta secção, ainda que obrigatoriamente alinhados com os princípios e objectivos do MPPM, não exprimem necessariamente as posições oficiais do Movimento sobre as matérias abordadas, responsabilizando apenas os respectivos autores.
 

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