«Os assassinos da memória», por Pierre Stambul
Pierre Vidal-Naquet usou esta expressão contra os falsários e negacionistas que negavam ou minimizavam a escala e a premeditação do extermínio perpetrado pelos nazis contra os judeus, os ciganos, os comunistas, os homossexuais…
Eu utilizo-a contra aqueles que se apropriaram da história, da memória e das identidades judaicas para construir, em nome dos judeus, um Estado de apartheid que lembra em muitos planos, segundo o historiador Zeev Sternhell, a Alemanha da década de 1930.
Israel, uma sociedade à deriva.
O resultado das eleições israelitas de 2019 apresenta uma fotografia mais do que inquietante desta sociedade. Cem deputados eleitos (em 120) são abertamente favoráveis ao apartheid. A «Lei sobre Israel Estado-Nação do Povo Judaico» é alvo de um amplo consenso. Ela lembra em muitos aspectos o arsenal jurídico que o apartheid sul-africano tinha fabricado. Declarações que normalmente deveriam levar os seus autores a tribunal servem de argumento eleitoral.
Citemos algumas: Lieberman [1] propôs decapitar os seus opositores à machadada depois de em tempos ter proposto bombardear o Canal de Suez. Bennet [2] explicou que «matou muitos árabes e não vê onde está o problema». Shaked [3] propôs o extermínio das mães palestinas porque elas «dão à luz a terroristas». Yitzhak Yosef, rabino-chefe, qualificou os afro-americanos como macacos.
Perdão para todos aqueles que esta lista esquece.
A eleição israelita de Abril de 2019 opôs dois criminosos de guerra.
Netanyahu aliou-se aos «Kahanistas» (movimento racista fundado em 1971 por Meir Kahane, durante muito tempo proibido pelos seus apelos ao assassínio) e, ao mesmo tempo que prometia a anexação da Cisjordânia, martelou que Israel era um Estado só para os judeus. O seu adversário, Benny Ganz, esteve à frente do exército durante o massacre da «Margem Protectora» (2014) e tinha-se gabado de fazer Gaza regressar à Idade da Pedra.
As barreiras morais desabaram. Durante as marchas do retorno, foi possível ver vídeos em que soldados gritam de alegria, como na barraca dos tiros na feira, quando matam ou estropiam um jornalista, uma enfermeira ou um simples jovem de Gaza. O ambiente assemelha-se ao do Sul dos Estados Unidos na época em que os linchamentos eram um espectáculo público de divertimento.
A escola, o exército e a propaganda oficial embrutecem e formatam toda uma sociedade, à imagem do que acontece em diversas sociedades totalitárias.
Este Estado, que era para dar um refúgio aos judeus perseguidos, tem valores que o aproximam infinitamente mais daqueles que cometeram o genocídio nazi do que daqueles que o sofreram.
Em Israel, não aderir a essa explosão de violência, de ódio ou de estigmatização do outro faz de si um traidor.
Os palestinos de Israel (20% da população, descendentes daqueles que por milagre escaparam da limpeza étnica premeditada de 1948) tornaram-se estrangeiros no seu próprio país. Metade deles abstiveram-se, recusam-se a caucionar a sua própria segregação.
Alguns não queriam isto.
Uma parte da sociedade israelita gostaria de viver num país normal, sem o pseudo-messianismo mortífero, sem o integrismo colonial e sem a guerra eterna como única perspectiva. Tem saudades dos kibutz ou da declaração de independência.
Singular amnésia: Israel construiu-se com base numa limpeza étnica programada. O historiador sionista Benny Morris reconheceu os numerosos crimes da guerra de 1948, explicando que eles eram indispensáveis para construir um Estado judaico.
Os fundadores deste Estado pensaram desde o início o supremacismo e uma separação estrita. Os palestinos que escaparam à expulsão de 1948 foram sempre sub-cidadãos sujeitos às leis militares e ao recolher obrigatório até 1966. Israel nunca foi o Estado de todos os seus cidadãos.
A conquista de 1967 e a colonização não são acidentes da História.
Foram premeditadas e realizadas pelos fundadores de Israel. O apartheid, o racismo, as declarações fascizantes e o militarismo são a consequência lógica desta história. Aqueles que lamentam que o sionismo tenha gerado um monstro ou que acham que Israel é a antítese do seu judaísmo, devem questionar-se.
Como diz a escritora Ofra Yeshua-Lyth, a criação de um Estado judaico não era uma boa ideia. Como diz o embaixador palestino Elias Sanbar, na origem desta guerra houve uma «grande substituição» que é necessário reparar.
Imaginar um Israel humanista, pacífico e democrático, sem reconsiderar o crime fundador de 1948, é ilusório.
Dominantes/dominados, como o colonizador tomou gosto na colonização e no apartheid.
Os judeus foram os párias da Europa. O sionismo fez dos judeus israelitas colonos europeus na Ásia. As leis que se seguiram à guerra de 1948 (nomeadamente a lei sobre os «presentes/ausentes», que permitiu apossar-se das terras dos palestinos expulsos) deram-lhes a propriedade quase exclusiva da terra. Os novos párias, os palestinos, tornaram-se um povo de refugiados, rejeitados e discriminados em toda a parte. A «lei do retorno» organizou, para os novos imigrantes judeus, o roubo das terras, das casas e dos bens palestinos. Depois de 1967, o roubo alargou-se aos territórios recém-ocupados. O que difere é que os legítimos ocupantes da terra ainda estão lá, diariamente confrontados com a violência dos colonos e do exército.
Disseram aos sobreviventes do genocídio e aos imigrantes arrancados à sua terra de origem que tinham um país mesmo deles e que era «uma terra sem povo para um povo sem terra». Ofereceram a polacos, a soviéticos, a marroquinos, um país e as suas riquezas que não lhes pertenciam. Para os judeus orientais, havia uma condição: desfazerem-se da sua «arabidade».
Inventou-se um romance nacional para justificar a grande substituição e o roubo: «estivemos no exílio e estamos a voltar para a nossa casa»; «Deus deu esta terra ao povo judeu». Este discurso continua a funcionar para justificar a conquista colonial.
Todos os primeiros-ministros israelitas desde há 50 anos ampliaram a colonização. Todos multiplicaram as leis supremacistas. Todos acompanharam o constante deslizamento para um apartheid sem complexos.
Nunca se viu um privilegiado aceitar voluntariamente a renúncia aos seus privilégios. A ocupação oferece vantagens ilimitadas a Israel: terras, água, riquezas, o facto de não ter de pagar nada por aquilo que é ocupado e a possibilidade de experimentar nos palestinos as armas e as tecnologias mais sofisticadas para melhor as vender…
Como país colonizador, Israel fez a si próprio, brevemente, a seguinte pergunta: «Vamos procurar um compromisso como fizeram os brancos sul-africanos ou vamos esmagar até o fim o povo autóctone, como a OAS [4] tentou fazer na Argélia?»
Esta última estratégia já não está em dúvida para ninguém.
Continuar a divulgar o mito dos «dois Estados vivendo lado a lado», tolerar que se associe Israel à memória do genocídio nazi, aceitar as mentiras propagandísticas do estilo «Israel tem o direito de se defender», é ser cúmplice.
Israel, peixe-piloto do fascismo que está a chegar.
O que se passa hoje seria impossível há alguns anos. Um fascista assumido, Bolsonaro, vai ao memorial Yad Vashem pelo braço do seu amigo Netanyahu. Explica que os nazis eram de esquerda e que se deve perdoar o Holocausto.
O próprio Netanyahu explica que Hitler não queria matar os judeus e que foi o grande mufti de Jerusalém quem esteve na origem dessa ideia. Visitando na Hungria o seu amigo Viktor Orban, apoia a campanha anti-semita conduzida por Orban contra Georges Soros. Orban reabilita o regime nazi do almirante Horthy, que participou no extermínio dos judeus húngaros, e Netanyahu limita-se a dizer que Soros é um inimigo de Israel.
A viragem para o fascismo dos que falam em nome dos judeus também acontece em França, onde o presidente do CRIF [5] pertenceu à Betar, uma milícia violenta, regularmente aliada à extrema direita.
Essa presença de uma ideologia fascizante em alguns dirigentes sionistas não é realmente nova, mas antigamente isso fazia-se com discrição. Hoje já não há nenhuma contenção.
Lembremos que, há um século, a corrente «revisionista» do sionismo fundada por Jabotinsky (eles próprios tinham escolhido essa denominação) estava muito próxima do fascismo italiano. Essa corrente rapidamente descambou em terrorismo cego contra os palestinos e depois contra os britânicos. Um dos ramos desse movimento (o grupo Stern, dirigido pelo futuro primeiro-ministro Yitzhak Shamir) colaborou com os nazis assassinando soldados e dignitários britânicos em plena guerra mundial.
Fingiu-se acreditar que essas práticas tinham desaparecido com a criação do Estado de Israel.
É totalmente falso. Os dirigentes israelitas utilizaram desde o início métodos expeditivos: recusa de aplicar a resolução 194 sobre o retorno dos refugiados palestinos em 1948, destruição sistemática das aldeias palestinas, apagamento dos vestígios da Palestina. Mostraram aplicadamente que desprezavam totalmente o direito internacional e só acreditavam nos factos consumados. O ataque de 1967, a recusa de evacuar os territórios recém-ocupados e o lançamento da colonização das novas terras conquistadas são actos cínicos de gangsterismo.
O pai de Netanyahu foi o secretário de Jabotinsky. O seu modo de agir baseia-se numa longa tradição. Com Trump, com a cumplicidade de dirigentes árabes (MBS na Arábia Saudita, Sissi no Egipto…), com Orban, Bolsonaro ou os cristãos evangélicos, Netanyahu pensa que está numa situação hegemónica em que tudo é permitido.
Quando este membro da nova internacional fascizante, com métodos expeditivos, invoca a memória do anti-semitismo e das vítimas do genocídio nazi, comporta-se também como um assassino da memória.
Cumplicidade e impunidade, a responsabilidade colossal da comunidade internacional.
Em Maio de 2017, Richard Falk e Virginia Tilley elaboraram para a CESAO (Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental) um relatório que prova com um significativo número de elementos que Israel é culpado do crime de apartheid, tal como foi internacionalmente definido e unanimemente reconhecido.
De imediato o secretário-geral da ONU, António Guterres, proibiu a publicação do relatório. Sem outro pretexto além de uma evidência: este relatório desagrada aos dirigentes estado-unidenses e israelitas.
Esta palhaçada não passa da continuação de uma série ininterrupta de actos de cobardia e de cumplicidade.
Em 1948, o enviado da ONU, conde Bernadotte, é assassinado juntamente com o coronel Sérot. Os assassinos, membros do grupo Stern, são conhecidos. A ONU não exige a sua prisão. Pouco depois eles encontram-se no primeiro governo de União Nacional de Ben Gurion. Alguns meses mais tarde, Israel é admitido na ONU com um texto que especifica que este país aceita e respeita o direito internacional: ora ele acabou de espezinhar a resolução 194 sobre o retorno dos refugiados e está a arrasar as aldeias palestinas. Desde há mais de 70 anos, as provocações israelitas nunca pararam. Em 1967, em resposta à resolução 242, que exigia a retirada dos territórios ocupados, Israel lançou o rolo compressor colonial, que desde então se tem continuamente ampliado. Quando, em 2010, Obama e Biden pediram um «congelamento» da colonização, o governo israelita anunciou imediatamente novas construções. Quando em 2014 a aviação e os tanques israelitas arrasam Gaza, a embaixada de França em Tel Aviv organiza um baile de solidariedade… com Israel.
Porquê essa cumplicidade que excede a indecência? Os dirigentes ocidentais são também assassinos da memória. Afirmam-se os defensores dos judeus vítimas do supremacismo nazi apoiando incondicionalmente supremacistas judeus que se obstinam em imitar os carrascos de ontem. Descarregam a sua culpabilidade inquestionável pelo anti-semitismo e pelo genocídio nazi para cima dos palestinos, que não têm nada a ver com essa barbárie europeia. Querendo reabilitar o marechal Pétain pelo seu papel na carnificina de Verdun e convidando Netanyahu para o aniversário da Rusga do Vel d'Hiv [6] (um crime bem francês, que é que Israel tem a ver com isso?), Macron é também um assassino da memória: ele dificulta qualquer compreensão.
Permitir aos líderes sionistas reclamarem-se da memória dos judeus perseguidos é fazer-lhes um favor fantástico; eles não têm nenhum direito de invocar esse passado que estão a espezinhar.
O crime prossegue contra os palestinos porque Israel se tornou o braço avançado do Ocidente: os seus dirigentes dão o exemplo de uma reconquista colonial bem-sucedida, de uma economia baseada nas tecnologias de ponta e nas armas mais eficazes, nos métodos mais aperfeiçoados para cometer assassínios impunes. São mestres na vigilância e na reclusão das populações supostas perigosas. Mostram que o racismo mais desinibido, o militarismo e a corrupção são o que há de mais eficaz para governar.
É mais do que urgente romper esta cumplicidade obscena.
Os judeus israelitas na senda dos Pieds Noirs [7] da Argélia?
Também na Argélia, europeus, na sua maioria franceses, muitas vezes pertencentes aos estratos mais desfavorecidos, se tornaram colonizadores.
Não lhes tinham dito que a Argélia era «uma terra sem povo para um povo sem terra» mas apenas que, sendo os nativos todos «atrasados», era lícito apossar-se das suas terras, privá-los de todos os direitos cívicos e usá-los como mão-de-obra livremente explorável.
E quando os argelinos se revoltaram, tornou-se «legítimo» queimar as suas aldeias, violar as mulheres, torturar, fazer desaparecer os corpos, multiplicar as execuções sumárias. No fim de contas, a grande maioria dos Pieds Noirs (mesmo aqueles que já lá estavam há várias gerações) e dos judeus argelinos (que eram autóctones, foram assimilados ao colonizador pelo decreto Crémieux [8]) tiveram de partir. Sem dúvida, se tivesse existido uma corrente política substancial entre os Pieds Noirs para negociar a sua manutenção numa Argélia independente, essa manutenção teria sido possível. Mas foi um movimento fascista, a OAS, que se expressou em seu nome.
O equivalente da OAS está no poder em Israel, sem alternativa real. Como os Pieds Noirs, os israelitas têm a certeza de ter a força consigo. Têm a certeza de que as enormes perdas infligidas ao adversário, as humilhações, as crianças presas, as torturas… lhes vão assegurar uma dominação eterna. Esta dominação é uma evidência reforçada pela vaga populista fascizante em muitos países. Muitos israelitas pensam que esta correlação de forças será eterna. Nenhuma correlação de forças é eterna.
Os judeus israelitas, ao contrário dos Pieds Noirs, não têm uma metrópole. Neste sentido, a política do tipo OAS actualmente seguida não é criminosa apenas contra os palestinos. É suicida para os judeus israelitas e ameaça também os judeus do mundo inteiro. Não se reparará a limpeza étnica de 1948 com uma outra limpeza étnica. Isso impõe acabar com o rolo compressor colonial.
A nossa memória: a vida em conjunto, a igualdade, a solidariedade.
Durante décadas, a maioria dos judeus considerou que a sua emancipação, como população discriminada, passava pela emancipação da humanidade. Pode-se discutir até ao infinito para saber se o envolvimento maciço dos judeus/judias nos combates pela democracia, pela revolução, contra o fascismo e o colonialismo, eram ou não uma «transposição laica» do messianismo.
Revolucionários/as, cientistas, escritores/as, cineastas, militantes operários/as, esses/as judeus/judias, mesmo quando não reivindicavam essa identidade, estavam na antítese dos fascistas no poder em Israel. Os valores desses homens e mulheres eram a igualdade, a solidariedade, o pensamento crítico, o universalismo, o compromisso. A figura do judeu foi durante muito tempo Hannah Arendt ou Abraham Serfaty. Hoje são os brutamontes Lieberman ou Netanyahu.
Depois do genocídio nazi, o grito dos sobreviventes foi: «que isto nunca mais aconteça»!
Os sionistas dizem: «que isto nunca mais NOS aconteça»! E isso quer dizer exactamente o oposto. Retomaram todos os «valores» dos carrascos de ontem: racismo sem complexos, negação dos direitos e da dignidade do outro, destruição sistemática da sociedade do outro, assassínios gratuitos, supremacismo. Imitam o que os estado-unidenses fizeram contra os ameríndios com a mesma boa consciência. Pensam que têm todos os direitos.
Eles não são apenas assassinos do povo palestino. Assassinam também a memória do judaísmo, seja laico seja religioso.
Notas:
[1] Avigdor Lieberman, líder do partido Israel Nossa Casa. Foi ministro da Defesa no último governo de Netanyahu.
[2] Naftali Bennet, dirigente do partido Lar Judaico e ministro da Educação no último governo de Netanyahu. Para as eleições de Abril de 2019 formou, juntamente com Ayelet Shaked, o partido Nova Direita.
[3] Ayelet Shaked, dirigente do partido Lar Judaico e ministra da Justiça no último governo de Netanyahu. Para as eleições de Abril de 2019 formou, juntamente com Naftali Bennet, o partido Nova Direita.
[4] Organisation de l'Armée Secrète (Organização do Exército Secreto): organização terrorista criada em 1961 para manter a colonização francesa na Argélia.
[5] Conselho Representativo das Instituições Judaicas de França.
[6] Rusga do Velódromo de Inverno de Paris: maior detenção em massa de judeus em França durante a Segunda Guerra Mundial, realizada por ordem do Governo francês de Vichy. Em 16 e 17 de Julho de 1942, mais de 13 000 pessoas foram presas em Paris e arredores para serem deportadas, a maior parte das quais ficaram encerradas no Velódromo de Inverno de Paris. Menos de cem sobreviveram à deportação.
[7] Europeus instalados na Argélia até à independência (1962).
[8] De 1870.
Pierre Stambul é co-presidente da Union juive française pour la paix (União Judaica Francesa para a Paz)
Este artigo foi originalmente publicado na página da Union juive française pour la paix em 5 de Maio de 2019. Tradução e notas de responsabilidade do MPPM
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