«O país das bombas de fragmentação», por Gideon Levy

Artigo publicado no jornal Haaretz em 10 de Agosto de 2017
 
Israel quer matar o maior número possível de pessoas inocentes. Não quer em nenhumas circunstâncias pertencer à comunidade dos países esclarecidos. Não há outra maneira de entender a arrepiante notícia de Gili Cohen (Haaretz de segunda-feira [7 de Agosto]) de que o establishment da defesa decidiu escolher um canhão de fabrico israelita que ainda não está finalizado em vez de um alemão, apenas para contornar a proibição internacional das bombas de fragmentação.
Mais de 100 Estados assinaram o tratado internacional que proíbe o uso de bombas de fragmentação; Israel, como de costume, não é um deles. Que é que Israel tem a ver com tratados internacionais, direito internacional, organizações internacionais — é tudo um grande incómodo desnecessário. Os outros rejeicionistas ao lado de Israel são, como de costume, a Rússia, o Paquistão, a China, a Índia e, claro, os Estados Unidos, o maior derramador de sangue do mundo desde a Segunda Guerra Mundial. É esta a companhia que Israel quer, o clube a que pertence.
As bombas de fragmentação são uma arma especialmente bárbara, uma bomba que se transforma em inúmeras pequenas bombas, espalhando-se por uma vasta área, matando e ferindo indiscriminadamente. Às vezes explodem anos depois de serem disparadas. O mundo ficou consternado e enojado com tal arma de destruição em massa, e com boas razões. O mundo — mas não Israel. Somos um caso especial, como é largamente sabido. Estamos autorizados a fazer tudo. Porquê? Porque podemos.
Isso já foi provado. Usámos bombas de fragmentação na Segunda Guerra do Líbano e o mundo ficou em silêncio. Também usamos fléchettes, sem piedade. Em 2002 eu vi um campo de futebol em Gaza atingido por obuses de fléchettes das IDF [forças armadas israelitas], que pulverizam milhares de dardos de metal potencialmente letais. Todas as crianças que ali jogavam tinham sido atingidas.
De outra vez vi os milhares de dardos pulverizados pelos obuses de fléchettes espetados nas paredes de casas em Gaza. Não era difícil imaginar o que aqueles dardos faziam aos corpos de pessoas.
As fléchettes também estão proibidas no mundo, mas são permitidas a Israel. Porquê? Talvez porque nós somos o Povo Eleito, talvez porque nós estamos autorizados a fazer tudo. Lutamos pela nossa desesperada e precária existência, qual frágil folha ao vento, e por isso estamos autorizados a usar bombas de fragmentação, fléchettes, fósforo branco, seja o que for. Afinal de contas, estamos a lutar pela nossa sobrevivência contra o avançado exército da República de Gaza e as terríveis divisões dos exércitos da Margem Ocidental. Estamos confrontados com a força aérea de Balata e a esquadra de Deheisheh [1], e sobretudo com «a brutalidade terrível» dos Palestinos. Por isso precisamos de armas, tantas quanto possível, sem restrições.
As bombas de fragmentação semearam caos e destruição chocantes no Kosovo, Laos, Afeganistão e Iraque. Israel quer fazer o mesmo. Os campos da morte na próxima guerra pela ocupação, que certamente chegará, serão como os campos da morte no Laos, graças às bombas de fragmentação disparadas pelo novo e sagrado canhão fabricado em Israel. Caso contrário, para que precisamos de bombas de fragmentação? Não temos suficientes armas regulamentares no nosso arsenal? As bombas de fragmentação são disparadas principalmente para áreas densamente povoadas. É aí que podem matar com a máxima eficácia. É por isso que as IDF as querem.
Da próxima vez que você usar o argumento de que o mundo inteiro está contra nós e a crítica e a animosidade contra Israel não decorrem das suas acções — lembre-se da bomba de fragmentação. Israel está a excluir-se pelas suas próprias mãos da família das nações, a juntar-se aos Estados mais brutais, a desprezar as decisões internacionais — e depois lamuria-se de que o mundo o odeia sem motivo. Da próxima vez que pensar nas IDF, o exército mais moral do mundo, pense na bomba de fragmentação.
O caso da bomba de fragmentação não é menos atroz do que o caso dos submarinos [2], mas não suscita interesse em Israel. Os submarinos são dinheiro, testemunhas estatais e suspeitos. Falar deles é sexy. A bomba de fragmentação tem a ver com a vida de pessoas inocentes, e quem se rala com isso?
Os submarinos são a corrupção, coisa a que a nação se opõe. A bomba de fragmentação é o desrespeito arrogante e permanente pelo direito internacional, coisa que não interessa a ninguém neste país. O mesmo establishment da defesa, podre até ao tutano, está por trás de ambos os negócios — corrupção de um tipo no caso dos submarinos e corrupção de outro tipo no caso das bombas de fragmentação. Mas o establishment da defesa pode tranquilizar-se. Ninguém será levado a julgamento por usar bombas de fragmentação.
[1] Balata e Deheisheh: campos de refugiados palestinos na Margem Ocidental ocupada.
[2] Caso de corrupção na compra de submarinos, em que estão nomeadamente envolvidas pessoas próximas do primeiro-ministro Benjamim Netanyahu.


 

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