«Ninguém pode dizer: Eu não sabia!», por Carlos Almeida
Os livros de história estão cheios de violências, de crimes e massacres, genocídios, formas institucionalizadas de domínio e desumanização do outro.
Quando os lemos, perguntamos: Como foi possível? O que aconteceu para que aquilo que hoje, com a distância, nos parece inteligível nas suas causas, não tivesse sido travado? Diremos talvez que à época em que isso terá acontecido, o mundo talvez desconhecesse, as notícias não corriam céleres como hoje. E inevitavelmente nos perguntamos quem eram os homens e as mulheres daquele tempo, o que disseram, o que fizeram para travar essas violências, que valores defenderam, que posições tomaram?
O dia vai chegar em que será a vez de os nossos filhos, os nossos netos olharem os livros de história, e aprenderem a soletrar a palavra Gaza, Palestina. Ouvirão falar de um tempo em que foi possível que uma população de mais de 2 milhões de pessoas, encarceradas num território com 300 e poucos km2 fosse bombardeada, massacrada durante semanas, quem sabe se meses, sem que tivesse sido possível travar essa chacina.
E perguntarão: o que fizeram os homens e as mulheres daquele tempo? Felizmente, estaremos vivos muitos de nós, e seremos nós os que em primeira instância teremos de responder: onde estivemos? o que dissemos? o que fizemos? Cada uma e cada um assumirá a sua responsabilidade. Só uma coisa ninguém poderá dizer: eu não sabia.
Desde ontem ao final do dia, é o silêncio o que se ouve em Gaza. Foram cortadas todas as comunicações. Nem as agências humanitárias conseguem contactar os seus agentes. A julgar pelo que aconteceu nas últimas semanas, à vista do mundo, só podemos imaginar o pior. Famílias inteiras, em alguns casos, extinguiram-se já. Cerca de 8 mil pessoas foram mortas, mais de um terço crianças. Hospitais, unidades de saúde, escolas, abrigos, mesquitas, igrejas – é verdade, em Gaza há igrejas, em alguns casos, antigas de muitos séculos, e cristãos – estão a ser bombardeados maciçamente. Mas não só em Gaza. Nos territórios da Margem Ocidental, nos campos de refugiados, nas cidades e vilas de maioria palestina dentro do Estado de Israel, está em curso uma campanha repressiva de extrema violência. Desde o dia 7 de Outubro foram mortas mais de 100 pessoas, somando-se às cerca de 240 assassinadas desde o início de ano. Em duas semanas, o número de palestinos presos, homens e mulheres, tantas e tantas crianças, duplicou e situa-se hoje acima dos 10 mil. Das prisões de Israel chegam notícias de sevícias, castigos e tortura. Duas pessoas foram mortas na última semana nas prisões de Israel. Já esta manhã, soubemos há pouco, Israel lançou sobre a metade norte da Faixa de Gaza, incluindo sobre a cidade, panfletos, declarando toda a região como zona de guerra e que os abrigos – precários que fossem – deixaram de ser zona segura, se alguma vez o foram.
A palavra que aqui quero trazer-vos é só uma: urgência! urgência! A urgência da solidariedade, da solidariedade com um povo que luta pela sua sobrevivência, pela sua liberdade. Em nome do sentido de humanidade, dos valores mais básicos e mais elementares fundadores da noção de comunidade que une, que deve unir todos os seres humanos, iguais em direitos e em deveres. Por cada bomba lançada sobre Gaza, por cada criança soterrada sob os escombros da sua casa, cada um de nós morre um pouco. O secretário-geral das NU publicou ontem uma nota breve numa rede social que terminava com a frase: este é um momento da verdade.
Hoje é a nossa vez, este é o nosso tempo, esta é a nossa responsabilidade. É preciso travar o genocídio, o caminho para o abismo, a histeria e a irracionalidade, a mais monstruosa campanha de desumanização que conhecemos, tão cruel, tão brutal que a simples exigência de um cessar-fogo se transformou numa reclamação radical, tão radical que inventamos eufemismos – como “pausa humanitária” – para não dizer simples e claramente, que pare a guerra, que pare o massacre. Só isso, nada mais, nada menos.
Precisamos ocupar ruas e avenidas – amanhã em Lisboa – depois em muitos outras vilas e cidades, trazer a bandeira palestina para todos os lugares, em todas as ocasiões. Multiplicar acções e iniciativas, pequenas e grandes. Chamar todas e todos a participar. A intervir. A fazer ouvir a sua voz. Para que quando aquele dia chegar, possamos olhar os nossos filhos e os nossos netos, de cabeça bem levantada e dizer-lhes, nós estivemos lá. E lutámos. E dissemos não. Não em nosso nome.
Carlos Almeida é investigador doutorado do Centro de História da Universidade de Lisboa e vice-presidente do MPPM.
Este é o texto da intervenção de Carlos Almeida no Painel 3 – Solidariedade e Cooperação do III Encontro pela Paz realizado em Vila Nova de Gaia em 28 de Outubro de 2023
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