«Netanyahu e a responsabilidade das forças militares de Israel (IDF)», por António Bernardo Colaço

O recente ultimato (sob a capa de um pedido de execução imediata) de Israel para a retirada das forças de UNIFIL (United Nations Interim Force in Lebanon), para as forças militares israelitas (IDF) poderem operar a seu contento no Sul do Líbano, demonstra a agonia de um político e de um regime que perdeu, em pleno século XXI, a noção de estar inserido no concerto de nações civilizadas, representadas pela ONU, da qual faz aliás parte. Este gesto do primeiro-ministro de Israel surge na sequência de dois tanques da IDF terem destruído o portão principal da base da UNIFIL, invadindo o seu recinto, acobertando a proeza com o fumo de 100 obuses disparados à distância.

Ao assim proceder, o Governo de Israel inverte os termos do que consta:

– da Resolução do Conselho de Segurança 1655, de 31.01.2006, unanimemente aprovada;

– do artigo 3.o da Convenção de Genebra Relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra, de 12.08.1949;
– e do Direito Internacional Humanitário (DIH) (t.c.p. Direito Internacional de Conflitos Armados), que tem o seu fundamento na IV Convenção de Genebra de 1949 e nos seus Protocolos Adicionais de 1977 e 2005.

Pela importância que assume no plano do imediato, sobretudo tendo em conta a insólita proposta de Netanyahu, próxima de loucura política, tenha-se em conta que o DIH só se aplica em conflitos bélicos, como é precisamente o caso em que o Estado de Israel está empenhado, sendo, por isso, aplicável às Forças Armadas envolvidas estabelecendo a linha vermelha para os desmandos e excessos praticados «sob a alegação de que estão a cumprir ordens».

O DIH é um conjunto de princípios decorrentes do Direito Internacional nomeadamente: o de distinção, que impõe a proteção da população civil (destaque a mulheres, crianças e idosos), distinta dos combatentes; salvar os objetos civis (escolas, hospitais, bairros residenciais, entre outros); o de proporcionalidade, ou seja, a proibição de ataques suscetíveis de causar danos superiores à vantagem militar projetada (há danos que podem ser evitados mesmo numa avaliação militar); e o de precaução, visando a preocupação de poupar a população civil. Os autores, diretos ou indiretos, de atos que infrinjam consciente e voluntariamente estes princípios, podem incorrer em «crimes de guerra». Crimes de guerra tal como vêm definidos no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Para o efeito, basta consultar o seu artigo 8.o 2.a. IV. (destruição de bens não justificada) e VII. (transferência ilegal de população); b. i. (ataque intencional à população civil), ii. (Ataque a bens civis), iv. (Ataques intencionais sabendo que o dano causado ultrapassa a necessidade militar).

Para justificarem a destruição de infraestruturas palestinas e do Líbano, bem como as suas escolas e hospitais, e a continuada imposição às populações para se deslocarem e seguidamente as perseguir, tanto o Primeiro-Ministro de Israel como o porta-voz das IDF alegam que o Hamas e o Hezbollah se escudam por de trás das populações ou se escondem em edifícios civis. Citemos o insuspeito Pacheco Pereira: «E não me venham com a história de que o facto de dois grupos de terroristas se esconderem num escudo de civis, e usarem escolas, hospitais, instalações da ONU – coisa que eles fazem – justifica o que Israel faz. Israel tem recursos e meios para chegar aos seus objetivos militares e tempo para o conseguir sem este massacre quotidiano. Não, não é a razão militar que justifica o que está a ser feito, é considerar que ser palestiniano é ser terrorista, é atribuir uma culpa coletiva às populações de Gaza e do sul de Líbano» (in Público de 12.10.2024, p.13).

Indubitável e inequivocamente Netanyahu e os responsáveis militares da IDF estão na senda da criminalidade de guerra e como tal, cedo ou tarde, terão de prestar contas.

(P.S. Estava a terminar este escrito quando fui confrontado com a notícia de que a UNIFIL irá continuar na execução do seu mandato. Trata-se de um gesto significativo e que demonstra que o Conselho de Segurança – enquanto entidade responsável pela Força Militar de Paz da ONU – tem o estofo moral e a capacidade política para contrariar Netanyahu, trazendo paz e segurança a Gaza, Líbano e Israel).

Lisboa, 22 de outubro de 2024

António Bernardo Colaço.


António Bernardo Colaço é Juiz-Conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça


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