«Na Palestina, no Outono, é a terra que resiste», por Carlos Almeida
Na Palestina, o Outono deveria ser um tempo de festa. Entre Outubro e Novembro, as famílias reúnem os mais jovens e os mais idosos, e espalham-se pelos campos entre o nascer e o pôr do sol, na colheita da azeitona. É uma época de celebração da vida, da fertilidade, de comunhão com a terra milenar, de partilha e fraternidade. Deveriam ser de festa e, ainda assim, estes são dias de uma desabrida violência e crueldade, tantas vezes de dor lancinante, ainda mais insuportável quanto sofrida sob um denso silenciamento.
Os holofotes da comunicação social sempre lestos a agitar o espantalho do “terrorismo”, sempre prontos a fazer eco das acções de resistência de jovens palestinos embrulhando-as na retórica dos “confrontos” e do “conflito”, ignoram por sistema o sobressalto que se vive por estes dias na generalidade das aldeias e nas comunidades rurais na Palestina.
Al-Mazraa al-Garbieh é uma pequena aldeia no eixo central da Margem Ocidental do rio Jordão, escassos 7 quilómetros a norte de Ramallah. Os primeiros registos da sua existência datam do séc. XVI, quando esta região estava integrada no Império Otomano e as famílias ali residentes, cerca de 8, pagavam um tributo correspondente à terra que cultivavam. No final do séc. XIX, a aldeia tinha crescido e era descrita, num inventário levado a cabo por uma sociedade inglesa, como “uma aldeia de boas proporções situada em terras baixas no meio de oliveiras”.
Em 1945, nas vésperas da criação do Estado de Israel e da limpeza étnica de parte da Palestina que se lhe seguiu, al-Garbieh teria uma população calculada em 860 pessoas, todas palestinas e muçulmanas, e dedicadas sobretudo à agricultura. Depois da divisão da Palestina a aldeia foi administrada pela Jordânia até 1967, altura em que foi submetida à ocupação israelita tal como toda a Palestina. De acordo com os Acordos de Oslo, as suas terras foram repartidas entre a zona B – controle de segurança israelita e governo civil da Autoridade Palestina – e a zona C – controle total de Israel –, respectivamente 54,2 e 45.8 por cento. Desde então a aldeia haveria de ser agregada a outras povoações nas cercanias, tomando, não por acaso o nome de Al-Zaitounah, “a oliveira”.
A cultura da oliveira constitui um eixo estruturante da condição de vida das populações na Palestina. A exportação de azeite da Palestina está documentada desde a Antiguidade. Metade do território da Palestina está ocupado por oliveiras que produzirão mais de 25 mil toneladas de azeitona e que dão sustento directo a mais de 100 mil pessoas, correspondendo a um quarto do rendimento agrícola.
Além do seu valor económico, as oliveiras são símbolo e testemunho dos vínculos milenares que ligam o povo palestino à sua terra. A oliveira mais antiga registada em todo o mundo está na Palestina, na aldeia de Al-Walaja, em Belém. Tem cerca de 5 mil anos, mede 13 metros de altura, ocupa uma área de 250 metros quadrados e as suas raízes estendem-se por 25 metros.
Já neste século e desde a sua segunda década, a expansão e contínua construção de colonatos por parte de Israel no território palestino ilegalmente ocupado desde 1967 atingiu com particular violência a aldeia de al-Garbieh. Primeiro de maneira precária e informal, caucionados depois pela administração militar israelita que governa os territórios palestinos, mas sempre com a protecção do exército israelita, grupos de colonos foram-se instalando na região, um após o outro, dando origem ao que são hoje os colonatos de Haresha, Kerem Reim e Horesh Yaron.
Em conexão com o estabelecimento dos colonatos, a estrada nº 450 que serpenteia pelo território palestino ocupado, ligando os colonatos entre si e estes com o território ocupado pela criação do estado de Israel em 1948 e onde apenas os colonos são autorizados a circular, constitui um obstáculo adicional ao acesso da população de Al-Zaitounah às suas oliveiras e campos de cultivo.
Para poderem cultivar as suas próprias terras – separadas das aldeias por uma malha de muitas centenas de postos de controle do exército israelita, além das barreiras físicas como os colonatos e as vias onde apenas circulam colonos – os camponeses palestinos são sujeitos a um sem número de autorizações concedidas pelas autoridades militares de Israel, tão humilhantes quanto limitadoras. Essas licenças têm uma duração de dois anos, mas, em qualquer momento, podem ser suspensas.
Durante o período das colheitas, o acesso às oliveiras e campos de cultivo pode ser concedido, durante algumas horas ou escassos dias, mas de igual modo pode ser impedido por nenhuma razão além da discricionariedade momentânea de uma qualquer patrulha do exército de Israel. Segundo dados das Nações Unidas, na colheita de 2020, por comparação com o ano anterior, verificou-se um decréscimo de mais de 60 por cento nas licenças de acesso concedidas. Também por essa razão, a colheita do ano transacto foi anormalmente baixa, cerca de 13 toneladas de azeitona, menos 55 por cento que em 2019.
Mas além da arbitrariedade do exército israelita, a população de todas as aldeias na Palestina ocupada em 1967 tem que confrontar-se com uma outra ameaça, tão ou mais brutal que aquela. No passado dia 21 de Outubro, quinta-feira, quando alcançaram os seus campos para a colheita da azeitona, os camponeses de al-Garbieh deparam-se com uma paisagem desoladora: mais de trezentas oliveiras tinham sido arrancadas ou mutiladas. Em duas semanas apenas, este foi apenas um dos dezoito ataques de colonos contra as comunidades camponesas da Palestina visando em particular as oliveiras e a sua produção.
Durante a campanha de 2020, em quatro semanas (de 7 de Outubro a 2 de Novembro), as Nações Unidas registaram um total de 39 ataques que provocaram dezenas de feridos, a mutilação de mais de 1000 oliveiras e o roubo de largas quantidades de azeitona. Mas vista em perspectiva, a crescente agressividade das milícias dos colonos fica ainda mais evidente.
Como o jornal Haaretz divulgou no início de Outubro, durante o ano de 2019 registaram-se 363 ataques contra os campos de cultivo e as aldeias palestinas. Esse número subiu para 507 durante o ano de 2020 e, só durante a primeira metade do ano corrente, esse número já totaliza 416 com um saldo de 33 feridos. Em todos os episódios de violência reportados, os colonos contaram com a passividade do exército israelita, quando não com a sua protecção e colaboração. Segundo dados da Cruz Vermelha Internacional, entre Agosto de 2020 e Agosto de 2021, foram destruídas mais de 9300 oliveiras.
Por isso, por estes dias, entre as comunidades camponesas da Palestina, o tempo é de sobressalto e de resistência também, mais que nunca. Os apedrejamentos e ameaças físicas das milícias dos colonatos, armadas e protegidas pelo exército, o roubo das colheitas, a mutilação das árvores são ameaças constantes. Visam incutir o medo, destruir as bases de sobrevivência económica da população palestina, provocar o êxodo, romper os vínculos milenares com a terra.
Em direito internacional, estas acções, patrocinadas pelo Estado de Israel, têm um nome: genocídio. São merecedoras de condenação veemente e devem suscitar uma solidariedade consequente. Esse é o de ver de todos os homens e mulheres de boa vontade.
Carlos Almeida é investigador doutorado do Centro de História da Universidade de Lisboa e vice-presidente do MPPM
Este artigo foi originalmente publicado no jornal A Voz do Operário em 8 de Novembro de 2021
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