Lisboa assiste a enorme manifestação pela Paz
Em resposta ao apelo de quase uma centena de organizações, milhares de pessoas vindas de todo o país, concentraram-se, em Lisboa, no Cais do Sodré, para de seguida desfilarem até ao Rossio proclamando bem alto que estamos «Todos Juntos Pela Paz» e que «É Urgente Pôr Fim à Guerra».
A forte representação da juventude seguiu-se ao quadrado de representantes das organizações promotoras. Também largamente representados seguiram-se os blocos de diferentes organizações, do movimento sindical e das diferentes regiões. Dois grupos de percussão animaram o desfile pontuando as palavras de ordem que foram incansavelmente repetidas ao longo de todo o percurso.
No palco instalado no Rossio, os «Amigos de Abril» protagonizaram o momento musical, precedendo as intervenções de Inês Reis, do Projecto Ruído – Associação Juvenil, Ilda Figueiredo, do Conselho Português para a Paz e Cooperação, de Carlos Almeida, do Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente, e de Tiago Oliveira, da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional. Leonor Teixeira, do Movimento Democrático de Mulheres, fez as apresentações e deu contexto às intervenções.
Intervenção de Carlos Almeida em representação do MPPM na manifestação “Todos Juntos Pela Paz"
“O que hoje se chama imperialismo é, na realidade, a afirmação da velha política colonial que, durante quatro séculos, explorou e escravizou os continentes”.
A frase foi proferida em Julho de 1914 por Jean Jaurés, o militante e dirigente socialista francês, indómito militante da causa da paz, por isso assassinado, quatro dias antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, e hoje tão injustamente esquecido, mesmo por tantos que se reclamam herdeiros da sua família política.
Haverá poucos lugares no mundo, onde a ideia implícita naquela frase tenha carregado tão fundas e dolorosas consequências como a região que habitualmente designamos como Médio Oriente. Desde que, nos idos de 1916, um tenente-coronel inglês, Mark Sykes, e um diplomata francês François Georges-Picot, à mesa do chá retalharam vastas regiões então integradas no Império Otomano a benefício dos apetites coloniais das respectivas potências, Grã-Bretanha e França, o Médio Oriente tem sido alvo da cobiça dos poderes imperiais.
Múltiplas e variadas fórmulas de poder, com destaque para o projecto colonial sionista que deu origem ao estado de Israel, foram aplicadas com o propósito de assegurar o controle e a pilhagem dos vastos recursos naturais ali existentes. À sombra e ao serviço dos interesses das potências imperiais, ali têm medrado gerações de oligarquias corruptas que, mergulhadas na mais obscena opulência, têm submetido os povos da região a regimes hediondos de opressão e exploração.
Sanções ilegais, criminosas e arbitrárias têm imposto restrições severas sobre a capacidade de acorrer a necessidades sociais básicas e mergulhado muitos países, alguns outrora desenvolvidos, em condições de pobreza profunda. Como amargamente se verificou no Irão de Mohammed Mossadeq, nos anos 50 do século XX, as aspirações a um desenvolvimento soberano e democrático sempre ali foram sufocadas por violentas e sofisticadas operações de desestabilização e ingerência externa, golpes de estado sangrentos e regimes opressivos.
A região tem sido fustigada por guerras sucessivas que trazem no bojo as mesmas ambições de hegemonia e domínio, do controle de recursos e rotas, de sujeição das legítimas ambições dos povos a um futuro de paz e desenvolvimento: Afeganistão, Iraque, Líbano, Líbia, Síria, Iémen. Países destroçados, dilacerados, imersos em conflitos sectários animados e estimulados por quem sabe que, dividindo sempre se está mais perto de reinar.
Os “Terroristas” de ontem agora ungidos em “democratas” – às vezes o contrário também – sucedem-se, como as moscas, para que a exploração pútrida se conserve e reproduza. Um instituto de relações internacionais ligado à Universidade de Brown calculou em mais de um milhão o número de vítimas directas provocadas pelas guerras, declaradas ou movidas por procuração, que os EUA lançaram na região nos últimos vinte anos. Mas o custo indirecto, esse é provavelmente incalculável. Muitos milhões de pessoas colocadas na dependência da ajuda humanitária, obrigadas a procurar refúgio em outros países, discriminadas e sujeitas a condições de exploração degradantes. Tudo a benefício do complexo militar e industrial, das grandes empresas que lucram com a destruição e o sofrimento humano, da rapina dos recursos, dos apetites de domínio e poder das grandes potências imperiais.
Mas, aquilo a que assistimos nos últimos 470 dias ultrapassa tudo o que vimos. Depois do bombardeamento de Dresden, de Hiroxima e Nagasaki, dificilmente poderíamos imaginar que um povo e uma região pudessem ser sujeitos a um tamanho exercício de crueldade e força bruta. Em Gaza aconteceu, acontecerá até aos primeiros segundos do cessar-fogo declarado – desgraçadamente, sabemos, é isso que vai acontecer – um genocídio, uma operação visando a aniquilação física de um povo, a expressão mais extrema do intento de dominação de que Jaurés falava. E um crime desta magnitude não tem remissão.
Agora que um pouco de alívio se anuncia para o povo palestino em Gaza, a primeira palavra que queremos proferir é respeito, muito respeito, um respeito profundo, uma admiração sem limite, pela coragem, a tenacidade, o humanismo, a honra e a dignidade com que o povo palestino enfrentou a agressão mais bárbara e desumana. Quem assim resiste, não pode senão vencer, mesmo que a vitória possa tardar ainda. Uma vez mais, o povo palestino ficou, agarrado a “vinte impossíveis”, mas ficou. Israel afogou Gaza em fogo e metralha, queimou e arrasou, saqueou e massacrou, prendeu, violentou e torturou, embebedou-se com o sangue e a dor das mães e dos filhos de Gaza, mas perdeu, perdeu de novo, perderá sempre. Em Gaza, como escreveu Mahmud Darwish, nunca se extingue a luz que ilumina de esperança o futuro.
De um pouco de alívio falamos, o tempo para que a ajuda humanitária tão necessária chegue e seja distribuída a quem dela tanto precisa, sem limites, tempo para que as prisões se abram, para que os reféns – todos são reféns – reencontrem as famílias, tempo para que as botas do ocupante abandonem o chão que profanaram. Tempo que é preciso que se prolongue e se torne permanente. pelas próximas fases do plano de cessar-fogo assinado e Israel fará tudo para que isso não aconteça, como o tem feito no Líbano.
Será alívio, mas não será ainda o horizonte da paz que aqui nos reúne. Nunca haverá paz sob a ocupação e a colonização, não há paz quando há checkpoints, quando as crianças saem para a escola sem saberem se regressam e, se regressando, encontram a sua casa, as suas mães e pais, os irmãos que, de manhã, ali deixaram, quando as pessoas são discriminadas em função das suas origens nacionais ou por qualquer outro critério que seja. Não há paz sem liberdade, sem soberania, sem desenvolvimento, sem cultura, sem escolas e universidades, sem hospitais.
Para muitos, o cessar-fogo em Gaza será o pretexto para que a guerra quotidiana que é a ocupação sionista da Palestina abandone os noticiários. No mesmo dia em que declarou aceitar o cessar-fogo, o governo de Israel prometeu intensificar a repressão na Margem Ocidental, acelerar a anexação e a colonização dos territórios palestinos ocupados em 1967. Ao mesmo tempo, viola todos os dias o cessar-fogo no Líbano e alarga a ocupação de território sírio, com a complacência do novo poder instalado em Damasco. Novas maquinações se anunciam, negociatas que normalizem a colonização, prolonguem a ocupação, prossigam, por outros meios, os intentos de limpeza étnica. Sai Biden, reentra Trump, mas o sentido da dança não muda.
Alguns dirão que é isto a paz. Os que aqui estamos não. A paz que defendemos, aquela que nos anima e reclamamos, por que lutamos, pela qual Jaurés deu a vida é assim como a canção do Zeca: uma “cidade sem muros nem ameias / gente igual por dentro, gente igual por fora/ Onde a folha da palma afaga a cantaria / Cidade do homem não do lobo mas irmão / Capital da alegria”. E é por isso que continuaremos a luta, a solidariedade de sempre com o povo palestino pela realização dos seus direitos nacionais, com o povo libanês, com o povo sírio, com o povo do Iémen, do Iraque, do Irão, com todos os povos do Médio Oriente que defendem a sua soberania contra a guerra e as ingerências, que reclamam o direito a decidirem em liberdade sobre os seus destinos, o princípio da resolução pacífica dos conflitos, o primado do direito internacional e da carta das Nações Unidas.
À luta, então,
Todos juntos pela Paz!
Lisboa, 18 de Janeiro de 2025
Fotos: CPPC, MPPM