Judeus pela Paz e Justiça: «Carta aberta ao coordenador nacional da estratégia europeia contra o anti-semitismo»

Exmo Dr. João Taborda da Gama,

Os Judeus pela Paz e Justiça desejam felicitá-lo pela sua nomeação como coordenador nacional da Estratégia Europeia para Combater o Anti-semitismo e Promover a Vida Judaica. Enquanto judeus, aplaudimos todas as diligências empreendidas de boa-fé no combate ao anti-semitismo e na salvaguarda da memória do Holocausto, aspectos centrais da Estratégia. Trata-se de um esforço especialmente importante numa altura em que movimentos de extrema-direita proliferam pela Europa – e não só –, disseminando as velhas teorias da conspiração que sustentaram séculos de perseguição aos judeus.

Contudo, quaisquer esforços para contrariar o aumento de um sentimento antijudaico devem começar por desfazer o equívoco comum de que o Estado de Israel representa todos os judeus ou de que a sua violência em Gaza ou na Cisjordânia reflecte a vontade de todos os judeus.

Aliás, na apresentação da Estratégia, Ursula von der Leyen salientou o compromisso da UE em "fomentar a vida judaica em toda a sua diversidade". Ora, esta diversidade na Europa inclui um extenso e muitas vezes negligenciado legado de judeus progressistas e humanistas, cujos contributos fazem parte integrante da nossa história. Em cada capítulo da modernidade europeia houve judeus que ajudaram a moldar as ferramentas que ainda hoje usamos na defesa dos direitos dos trabalhadores, na prevenção da discriminação racial e religiosa e na luta contra o fascismo. Enquanto a narrativa dominante alega que a segurança dos judeus depende de um Estado judeu, nós estamos em linha com judeus progressistas que há mais de um século repetem que podemos e devemos poder viver em segurança onde quer que estejamos, nos países em que vivemos.

Esta linha da cultura e da tradição judaicas tem tanto direito a ser celebrada, preservada e protegida quanto qualquer outra. Paradoxalmente, talvez, isto conduz-nos a algumas questões sérias e que nos preocupam no que respeita a esta Estratégia.

Uma das dimensões centrais da Estratégia da UE consiste em encorajar as instituições a adoptarem a controversa "definição operacional" de anti-semitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). Apresentada em 2021 como orientação não vinculativa, esta definição, através de formulações e linguagem ambíguas, procura desencorajar ou mesmo criminalizar discursos que possam ser usados para criticar Israel, classificando-os de anti-semitas. Lê-se:

“Tendo em conta o contexto global, podem apontar-se como exemplos actuais, mas não exaustivos de anti-semitismo na vida pública, nos media, na escola, nos locais de trabalho e na esfera religiosa os seguintes:

  • Negar ao povo judeu o seu direito à autodeterminação, por exemplo, afirmando que a existência do Estado de Israel é um empreendimento racista.
  • Estabelecer comparações entre a política israelita contemporânea e a dos nazis.”

Esta definição tem sido instrumentalizada pela UE e pelos governos dos Estados-membros para silenciar qualquer crítica a Israel — particularmente quando esta provém de pessoas racializadas e em especial de judeus. Em todo o mundo, artistas, intelectuais de renome, académicos e jornalistas têm perdido voz, empregos e financiamentos à custa de acusações segundo as quais as suas legítimas críticas a Israel seriam anti-semitas. Um relatório de Junho de 2023 do European Legal Support Center identificou, entre 2017 e 2022, 53 incidentes na UE e no Reino Unido em que a definição da IHRA foi usada para silenciar vozes pelos direitos dos palestinianos. Destes, 21% tiveram como alvo judeus e 79% foram dirigidos a pessoas racializadas, incluindo 19 palestinianos.

A instrumentalização da definição da IHRA parece ter conhecido uma escalada nestes últimos 16 meses. Durante o ano que se seguiu ao 7 de Outubro de 2023, só na Alemanha, o projecto Archive of Silence documentou uma lista de 183 cancelamentos justificados com críticas a Israel — dos quais pelo menos 62% visaram pessoas com origens muçulmanas, árabes, judias ou do Médio Oriente. De entre estas, 17% tinham origens palestinianas e 21% origens judaicas, incluindo sobreviventes do Holocausto.

Torna-se claro que, em muitos casos, a definição da IHRA tem sido cinicamente hasteada, não para proteger os judeus do anti-semitismo, mas para proteger o Estado de Israel das críticas — ainda que isso implique a detenção ou o silenciamento de pessoas judias e a sua classificação como "anti-semitas" — permitindo assim à UE justificar o seu apoio ao genocídio em curso na Palestina. Se o senhor alavancar o seu cargo no sentido de permitir que a definição da IHRA ganhe influência nas instituições portuguesas, serão provavelmente activistas das populações mais marginalizadas que irão pagar o preço, como já aconteceu noutros Estados-membros. Existem outras definições de anti-semitismo, como a Declaração de Jerusalém sobre anti-semitismo. que lhe recomendamos ter em consideração.

Uma das dimensões centrais enunciadas na Estratégia é o “combate ao negacionismo, distorção e trivialização do Holocausto”. Este aspecto reveste-se para nós de uma importância particular, já que muitas das nossas famílias incluem vítimas e sobreviventes do Holocausto. Mas a maior trivialização do Holocausto tem vindo a ocorrer nas mais altas instâncias, quando responsáveis europeus invocam o genocídio dos judeus para justificar a violência de Israel nos dias de hoje, ou até mesmo para desculpar os actos de hooligans israelitas em Amesterdão.

Na declaração pública em que anunciou a sua nomeação, o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, disse: “Uma comunidade desumanizada é um caminho profundamente errado e não pode ser um instrumento da política"; não poderíamos estar mais de acordo. Porém, receamos que a Estratégia da UE tenha o potencial de fazer exactamente isso. Na sua tentativa de nos destacar, elegendo-nos para uma protecção especial, a Estratégia acaba efectivamente por comprimir as comunidades judaicas num monólito.

Além disso, uma iniciativa que privilegia e protege os judeus ao mesmo tempo que é prejudicial para quaisquer críticos de Israel dá credibilidade a perigosos estereótipos sobre os judeus e promove o tipo de teorias da conspiração destituídas de fundamento (como, por exemplo, a chamada teoria da "grande substituição") que dão gás aos movimentos de extrema-direita em expansão quer em Portugal quer no resto do continente.

Receamos qualquer iniciativa que substitua a perigosa formulação:

Os judeus como grupo monolítico são perniciosos e devem ser erradicados.

pela igualmente perigosa formulação:

Os judeus como grupo monolítico são especiais e devem ser protegidos acima de outros.

Ambas são desumanizadoras e podem ser usadas para justificar danos causados à nossa e a outras comunidades. Muitos grupos marginalizados, com longas histórias de perseguição na Europa merecem ser “protegidos e promovidos em toda a sua diversidade” e esperamos ver um dia estratégias europeias semelhantes para, por exemplo, combater a islamofobia, proteger as vidas "trans" ou promover a vida cigana.

Acreditamos que a nossa segurança enquanto judeus está ligada à de todas as pessoas e que a vida judaica só estará protegida quando todas as vidas forem protegidas. É, pois, da nossa responsabilidade denunciar as políticas discriminatórias que o mau uso da palavra "antissemitismo" tem permitido.

Esperamos vê-lo utilizar a sua plataforma no espírito em que acreditamos que ela deve ser usada: para proteger todas as vítimas de discriminação e honrar a memória do Holocausto combatendo a desumanização de todos. Significa isto alargar a protecção a judeus e não-judeus, cujo direito a exprimir as suas legítimas críticas a Israel deve ser preservado.

Conhecemos o verdadeiro perigo e violência enfrentados pelos judeus quando milhões de europeus escolheram a sua autoprotecção em detrimento da crítica legítima ao regime nazi e recusamo-nos a reviver um legado de silêncio. Quando dizemos “nunca mais”, queremos dizer “nunca mais para ninguém”.

Missy Chimovitz,

Alexandra Horowitz,

Alan Stoleroff,

Myriam Zaluar ( Judeus pela Paz e Justiça)


Esta carta aberta foi publicada na edição on-line do jornal Público em 23 de Fevereiro de 2025.


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Terça, 25 de Fevereiro de 2025 - 12:12