«Israel é um Estado fora da lei», por Carlos Almeida
No dia 7 de Fevereiro de 1948, mais de 3 meses antes da proclamação do Estado de Israel, num discurso proferido durante uma reunião da direcção do seu partido realizada em Jerusalém, Ben Gurion afirmou:
“Quando agora chego a Jerusalém, sinto-me numa cidade judaica. (…) É verdade que nem toda a Jerusalém é judaica, mas já existe um enorme bloco judaico: quando se entra na cidade por Lifta e Romema, por Mahaneh Yehuda, Rua Rei George e Mea Shearim – não há árabes. Cem por cento judeus. Desde que Jerusalém foi destruída pelos romanos, a cidade não era tão judaica como agora. Em muitos bairros árabes no lado ocidental, não se vê um único árabe. (…) E o que aconteceu em Jerusalém e em Haifa pode acontecer em grandes partes do país.”
Nesta passagem está inscrita a natureza estrutural do processo que se desenvolve na Palestina – por Palestina eu entendo o território administrado pelo Mandato Britânico – desde há pouco mais de um século e que pode resumir-se em duas palavras: limpeza étnica. Com ritmos variáveis, de formas umas vezes insidiosas outras ostensivas, mas todas sempre violentas, Israel busca um único objectivo: controlar o máximo de território com um mínimo de população nativa. O mundo sabe-o, soube-o desde o início e no entanto…
No entanto, no dia 6 de Outubro de 2023 (76 anos depois da resolução 181 da Assembleia Geral da ONU, que previa a partição da Palestina em dois Estados), o governo português de então entendia não ser ainda o momento de Portugal reconhecer o Estado da Palestina. No dia 6 de Outubro de 2023, a União Europeia mantinha com Israel um acordo de cooperação que lhe permitia o acesso a fundos europeus e vantagens comerciais excepcionais. No dia 6 de Outubro de 2023, os EUA abasteciam Israel com armas em quantidades sem precedentes graças ao maior acordo de ajuda militar jamais assinado com algum país, enquanto a sua embaixada continuava em Jerusalém, no mesmo lugar para onde Donald Trump a transplantara.
Passaram 714 dias de um genocídio transmitido em directo. Ontem mesmo, com 369 mortes diagnosticadas como má-nutrição, incluindo 97 crianças, os EUA vetaram no Conselho de Segurança da ONU, pela sexta vez, uma resolução, exigindo um cessar-fogo imediato e permanente. Com mais de 250 jornalistas e 959 profissionais de saúde assassinados por Israel, a União Europeia discute agora a possibilidade de suspender parágrafos, vá… secções, do dito acordo de cooperação e entretém-se a distinguir, dentro do governo de Israel, os ministros que considera extremistas entre os que alegadamente o não serão. Hoje, depois de, pelo menos, 65 mil pessoas mortas só em Gaza, o governo português admite considerar uma espécie de reconhecimento de uma espécie de Estado da Palestina numa fórmula mais parecida com uma ordem de rendição ditada por uma potência imperial sobre povos colonizados.
Aqui chegados, se formos capazes ainda de fitar nos olhos os homens, mulheres e crianças que deambulam por Gaza, fintando os bombardeamentos e ao sabor do mando dos generais de Israel, dos que olham as suas casas e oliveiras destruídas por bandos de colonos, os que desconhecem o paradeiro dos seus filhos ou irmãos presos aos magotes, os que, nos campos de refugiados da diáspora vivem atormentados com a sorte dos seus familiares, de todas e de todos esses, ouviremos uma pergunta singela que Darwish inscreveu num dos seus poemas e a que teremos de dar resposta:
“Senhoras e senhores de bom coração, a terra dos homens é, como vós, dizeis, de todos os homens? Onde está então o meu casebre? Onde estou eu?”.
Em tempos, um ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal cunhou uma frase que ficou célebre: “tudo pela Palestina, nada contra Israel”. Essa política, prosseguida por governos de diferentes configurações, nunca foi defensável, mas hoje é indecorosa. Ontem, terminou o prazo de um ano dado pela Assembleia Geral da ONU para que Israel retirasse dos territórios palestinos ocupados em 1967 e desse cumprimento às medidas provisórias decretadas pelo Tribunal Internacional de Justiça para prevenir o crime de genocídio. Israel é um Estado fora da lei e como tal deve ser tratado: isolamento internacional, sanções, boicote, esse é um imperativo do tempo que vivemos.
Do nosso lado, dos que tomaram a opção de fazer do destino daquele povo e daquela terra uma causa de vida, aqui continuamos, hoje como antes de Outubro de 2023, a levar a bandeira da Palestina a todos os lugares. De braço dado com muitas organizações e colectivos, desde logo, a CGTP-IN, o CPPC, a Associação Projecto Ruído, também a Palestina em Português, os Judeus pela Paz, os Parents for Peace, a Arte pela Palestina, tantos e tantos grupos por esse país fora, nestes dois últimos anos contamos 194 acções de rua, manifestações, concentrações, actos públicos vários a que há que acrescentar os abaixo-assinados, sessões de cinema e teatro, debates, exposições. Não se confunda a imagem do país que é transmitida por um sistema mediático submetido aos interesses dos poderosos com a realidade, e não se diga, como se ouviu já no comentariado televisivo, que “em Portugal não há nada”. Há sim, em Portugal há o esforço e a dedicação dos que escrevem e pintam nas ruas as frases que as televisões não autorizam, e o trabalho de tanta e tanta gente de quem nunca se falará, que sempre recusa holofotes, mas que aí está, dando o melhor de si para que em Portugal se ouça a voz da solidariedade, porque é pelo povo palestino e só por ele que se movem.
E venham mais, venham muitas e muitos mais, todas e todos são bem-vindos, todas e todos são necessários para construir o sobressalto cívico que a urgência impõe. Vemo-nos por aí, nas muitas acções anunciadas ou em preparação, no âmbito da Campanha de Solidariedade com o Povo Palestino Todos pela Palestina, Fim ao Genocídio, Fim à Ocupação que já reúne a adesão de 57 organizações e que está em processo de alargamento, desde já, o Concerto pela Paz e de Solidariedade com a Palestina, 18 de Outubro, 16 horas, Fórum Lisboa. E tomem nota: dia 29 de Novembro, manifestação nacional convocada para Lisboa e o Porto, para assinalar o Dia Internacional de Solidariedade com o Povo Palestino.
Carlos Almeida é Historiador e Vice-Presidente do MPPM – Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente
Este é o texto da intervenção proferida na "Sessão Pública pela Palestina"realizada no dia 19 de Setembro, no ISCTE, em Lisboa.
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