Israel devolve corpos de presos palestinos com evidências de tortura e execução extrajudicial
Desde a implementação do acordo de cessar-fogo em Gaza, em 10 de Outubro, Israel entregou os corpos de 195 presos palestinos que morreram em cativeiro. Muitos evidenciam sinais de tortura e execução sumária. Pelo menos 135 corpos vieram de Sde Teiman, um centro de detenção notório que já enfrenta acusações de tortura e mortes ilegais de presos sob custódia.
Pelo menos 75 detidos palestinos morreram em prisões israelitas desde 7 de Outubro de 2023, de acordo com a ONU. Para o Clube dos Prisioneiros Palestinos, esse número ascende a 80. De acordo com a mesma fonte, o número total de mortos entre os prisioneiros e detidos cujas identidades são conhecidas desde 1967 subiu para 317, mas este número será mais elevado, pois há informações sobre dezenas de detidos que foram sumariamente executados após a sua prisão, especificamente os de Gaza.
Sinais de tortura e execuções sumárias
Há anos que são comuns relatos de que Israel tortura detidos palestinos nas suas prisões, e estes aumentaram desde o início da guerra de Israel contra Gaza, com alguns políticos israelitas a defenderem mesmo esta prática.
O grupo de direitos humanos israelita B'Tselem afirmou num relatório em Agosto passado que o sistema prisional israelita era uma «rede de campos de tortura» com «actos frequentes de violência grave e arbitrária; agressão sexual; humilhação e degradação; fome deliberada; condições anti-higiénicas forçadas; privação de sono; proibição e medidas punitivas para o culto religioso; confiscação de todos os bens comuns e pessoais; e negação de tratamento médico adequado».
Para Naji Abbas, da Physicians for Human Rights Israel (PHR), «os sinais de tortura e abuso encontrados nos corpos dos palestinos recentemente devolvidos por Israel a Gaza são horríveis – mas, infelizmente, não surpreendentes». E disse: «Registámos centenas de casos de tortura e mortes no sistema prisional israelita, dezenas de palestinos que foram mortos, espancados até à morte ou que morreram por lhes ter sido recusado tratamento durante meses».
A PHR reclama: «O número sem precedentes de palestinos que morreram sob custódia israelita, juntamente com provas verificadas e documentadas de mortes resultantes de tortura e negligência médica — e agora as descobertas nos corpos devolvidos — não deixam dúvidas: é urgentemente necessária uma investigação internacional independente para responsabilizar os culpados em Israel.»
Ismail al-Thawabta, director-geral do gabinete de comunicação social do governo em Gaza, disse que as investigações oficiais confirmaram que as forças de ocupação cometeram violações hediondas contra os detidos e que vários deles foram executados por enforcamento ou por tiros à queima-roupa, confirmando as execuções deliberadas realizadas no terreno.
Médicos em Khan Younis afirmaram que os exames oficiais e as observações no terreno «indicam claramente que Israel cometeu actos de homicídio, execuções sumárias e tortura sistemática contra muitos palestinos». Autoridades de saúde disseram que as descobertas documentadas incluíam «sinais claros de tiros directos à queima-roupa e corpos esmagados sob as esteiras de tanques israelitas».
Alguns dos corpos tinham membros ou dentes em falta, enquanto outros pareciam ter sido queimados, disse o Ministério da Saúde palestino em Gaza na quarta-feira. «Crimes que não podem ser escondidos... Foi assim que os corpos dos prisioneiros de Gaza foram devolvidos – vendados, amarrados como animais e com sinais de tortura severa e queimaduras», escreveu o Dr. Munir al-Bursh, director-geral do Ministério da Saúde, nas redes sociais.
Em entrevista à Al Jazeera, Raed Mohammad Amer, da Sociedade Palestina de Prisioneiros (PPS), disse que sua organização descobriu que Israel executou dezenas de palestinos. A PPS referiu que os testemunhos prestados por detidos palestinos que foram libertados após cumprirem as suas penas ou no âmbito do recente acordo de cessar-fogo revelam um nível sem precedentes de brutalidade e crimes cometidos contra eles durante as prisões ou detenções, especialmente desde o início do genocídio israelita em Gaza, exigindo uma investigação internacional urgente e independente sobre estes crimes, com base nas provas disponíveis.
Para a PPS, o que está a acontecer nas prisões israelitas constitui uma extensão da guerra de genocídio e os números anunciados de mortes entre os detidos reflectem apenas uma pequena parte da extensão dos crimes e violações, incluindo tortura física e psicológica, fome, negação de tratamento médico, humilhação e agressão sexual, incluindo violação.
A PPS também apelou ao Comité Internacional da Cruz Vermelha para que retomasse imediatamente as suas visitas às prisões e pressionasse as autoridades de ocupação a permitirem que as famílias dos detidos visitassem os seus entes queridos sem restrições.
Sde Teiman: uma descida aos infernos
Sde Teiman é uma base militar no deserto de Negev onde, de acordo com fotos e testemunhos publicados pelo The Guardian no ano passado, os detidos palestinos eram mantidos em jaulas, vendados e algemados, acorrentados a camas de hospital e obrigados a usar fraldas.
O exército israelita lançou uma investigação criminal, que continua em curso, sobre a morte, no ano passado, de 36 prisioneiros detidos em Sde Teiman.
Sde Teiman é um depósito para corpos retirados de Gaza, mas também é um campo de prisioneiros que se tornou famoso pelas mortes em cativeiro. Activistas de direitos humanos estão a exigir uma investigação para descobrir se alguns dos palestinos devolvidos com evidência de teres sido executados, foram mortos em Sde Teiman.
Alguns médicos palestinos dizem que o facto de muitos dos corpos estarem com os olhos vendados e amarrados sugere que foram torturados e depois mortos durante a sua detenção em Sde Teiman – onde Israel manterá quase 1500 corpos de palestinos de Gaza.
O The Guardian recolheu testemunhos das condições de detenção em Sde Teiman: «Eu testemunhei um paciente de Gaza ser trazido com um ferimento de bala no peito. Ele estava com os olhos vendados e algemado, nu quando chegou ao serviço de urgências. Outro paciente, com um ferimento de bala na perna direita, também chegou ao meu hospital em condições semelhantes.»
Shadi Abu Seido, um jornalista palestino de Gaza que trabalha para o Palestine Today, foi libertado após 20 meses de detenção em Sde Teiman e noutra prisão israelita, relata: «[…] Fui então transferido para Sde Teiman e mantido lá por 100 dias, durante os quais permaneci algemado e com os olhos vendados. Muitos morreram na detenção, outros enlouqueceram. Alguns tiveram membros amputados. Sofreram abusos sexuais e físicos. Trouxeram cães que urinavam em nós. Quando perguntei por que tinha sido preso, responderam: “Matámos todos os jornalistas. Eles morreram uma vez. Mas trouxemos-te para cá e vais morrer centenas de vezes”».
Um incidente de abuso em Sde Teiman particularmente notável e documentado foi o estupro colectivo de um prisioneiro palestino por guardas, no ano passado. Um vídeo verificado mostra guardas prisionais israelitas usando os seus escudos para se esconder da câmara antes de estuprar a vítima, que ficou incapaz de andar, segundo os meios de comunicação israelita.
No âmbito da investigação deste crime, um soldado israelita que serviu em Sde Teiman declarou: «Sde Teiman, como qualquer pessoa que lá esteve sabe, é um campo de tortura sádico. Dezenas de detidos entraram vivos e saíram em sacos mortuários. Há testemunhos de guardas, médicos e detidos. Nada disto foi mencionado na investigação. Como se todo o inferno que lá criámos se resumisse à questão de um objecto ter sido ou não inserido no ânus de um detido. Mas eu vi esse inferno. […] Vi pessoas entrarem nas instalações com ferimentos de guerra e passarem semanas sem assistência médica. Vi-as urinar e defecar sobre si porque não tinham autorização para usar a casa de banho. Ainda me lembro do cheiro. Muitas delas nem sequer eram militantes — apenas residentes de Gaza presos até à investigação, que foram libertados após abusos severos, quando se descobriu que eram inocentes. Não admira que lá tenham morrido pessoas. O verdadeiro milagre é que alguém tenha sobrevivido. […] O que aconteceu em Sde Teiman não é segredo, mas a maioria dos israelitas ainda não sabe nada sobre isso — mesmo agora — porque os meios de comunicação israelitas ignoraram quase por completo. Foi também por isso que aceitei ser entrevistado. Porque os palestinos ainda saem dos nossos centros de detenção em sacos para cadáveres, e a maioria das pessoas à minha volta nunca ouviu falar disso.»
Uma vala comum para os corpos não identificados
Israel está a devolver os corpos de palestinos sem identificação, com números em vez de nomes, e as autoridades em Gaza estão a envidar esforços árduos para identificá-los usando meios limitados e recursos primitivos.
Na passada quarta-feira foram enterrados numa vala comum em Deir al-Balah, na parte central da Faixa de Gaza, 54 corpos de palestinos mortos sob detenção das forças de ocupação israelitas, por não ter sido possível proceder à sua identificação.
O reconhecimento pelos familiares é dificultado pelo facto de as suas características físicas se terem desvanecido em resultado da tortura.
Ainda há mais de 9000 palestinos nas prisões de Israel
Quase 2000 palestinos de Gaza e da Cisjordânia ocupada foram libertados por Israel esta semana como parte do acordo de cessar-fogo, mas ainda há mais de 9100 palestinos nas prisões e centros de detenção de Israel, além de um número não identificado em Sde Teiman, no deserto de Naqab (Negev) e em Naftali, no Norte de Israel.
Cerca de 1700 dos dois milhares de palestinos agora libertados tinham sido detidos desde o início da agressão em 7 de Outubro de 2023. Entre os 9100 ainda detidos contam-se 3544 em detenção administrativa, i.e., sem acusação ou culpa formada, 400 menores e 52 mulheres.
Legalizar a execução de presos palestinos
A Sociedade Palestina de Prisioneiros (PPS) acusa o ministro israelita Itamar Ben-Gvir de continuar a incitar publicamente a manutenção de uma política sistemática de genocídio dentro das prisões israelitas, através dos seus repetidos apelos para matar e torturar detidos palestinos.
A PPS afirmou num comunicado que este incitamento coincide com medidas legislativas no Knesset que visam aprovar uma lei para executar detidos palestinos e estabelecer um tribunal excepcional, desprovido de quaisquer garantias judiciais, para julgar detidos da Faixa de Gaza.
A organização salientou que estes processos legais, que começaram com aprovações preliminares, representam uma mudança perigosa no sentido de dar cobertura legal ao assassinato e à execução dos presos palestinos.
Fontes: The Guardian, Al Jazeera, Agência Ma’an, Agência WAFA, IMEMC
Foto: O infame campo de detenção de Sde Teiman