«A História não perdoará aos que faltarem à chamada!», por Carlos Almeida

“O dia vai chegar em que será a vez dos nossos filhos, dos nossos netos, olharem os livros de história, e aprenderem a soletrar as palavras Gaza, Palestina. Ouvirão falar de um tempo em que foi possível que uma população de mais de 2 milhões de pessoas, encarceradas num território com 300 e poucos km2 fosse bombardeada, massacrada durante semanas, quem sabe se meses, sem que tivesse sido possível travar essa chacina.

E perguntarão: o que fizeram os homens e as mulheres daquele tempo? Felizmente, estaremos vivos alguns, e seremos nós os que em primeira instância teremos de responder: onde estivemos? o que dissemos? o que fizemos? Cada uma e cada um assumirá a sua responsabilidade. Só uma coisa ninguém poderá dizer: eu não sabia.”

Assim começava a intervenção que proferimos, no final de Outubro de 2023, desde a tribuna do III Encontro da Paz, em Vila Nova de Gaia. Passaram-se os dias, 602, as semanas, 86, os meses, 20. Caminhamos para os 2 anos já. Ontem mesmo, Francesco Checchi, um epidemiologista italiano da London School of Hygiene and Tropical Medicine estimava em cerca de 95 mil, o equivalente a mais de 4 por cento da população daquele território, o número de pessoas mortas em Gaza só em resultado de lesões traumáticas provocadas pelos bombardeamentos de Israel. Em boa verdade ninguém conseguirá dizer ao certo quantas pessoas pereceram. Ao dia de hoje, Israel controla 77 por cento da Faixa de Gaza e o rasto que deixa à sua passagem é apocalíptico. Mais de 88 por cento de Gaza está destruída: 719 poços de água, 3780 km de rede eléctrica, mais de 330 mil metros lineares de redes de abastecimento de água, 655 mil metros lineares de redes de esgotos e 2,85 milhões de metros lineares de ruas e estradas reduzidos a pó e escombros. Também ontem, o porta-voz do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação da Ajuda Humanitária afirmava, cito, «Gaza é o lugar de maior fome na Terra», acrescentando que o território é «a única área delimitada onde existe uma população inteira em risco de fome, cem por cento». A Faixa de Gaza enfrenta 88 dias de bloqueio total; 44 centros de distribuição de ajuda alimentar foram destruídos, 33 cozinhas colectivas foram bombardeadas; 50 mil camiões carregados com material de auxílio humanitário estão bloqueados à entrada do território. 

A fome é transformada em arma de guerra. Centros de distribuição de ajuda alimentar operados por mercenários americanos são usados para atrair a população faminta para o sul do território, dessa forma facilitando a sua expulsão. Tecnologias de identificação facial discriminam os que buscam comida. Existisse inteligência artificial em 1940 e seria assim que funcionaria o gueto de Varsóvia.

O mesmo padrão de violência indiscriminada é visível no território da Margem Ocidental do rio Jordão, incluindo Jerusalém, ocupado por Israel em 1967. Até à passada terça-feira, dia 27 de Maio, tinham ali sido mortas 939 pessoas, das quais 198 crianças. Só desde o início deste ano, cerca de 42 mil pessoas, na sua maioria vivendo nos campos de refugiados de Jenin e Tulkarm, foram desalojadas e as suas casas destruídas. Nos últimos dias, o governo de Israel anunciou planos para a construção de mais 22 colonatos em território palestino ocupado que, sendo concretizados, se acrescentarão aos 43 que foram autorizados desde Outubro de 2023; desde essa mesma data, contam-se mais de 2300 ataques de bandos de colonos contra a população palestina da qual resultaram feridos e destruição de propriedades. 

Nesta altura, estarão nas cadeias de Israel cerca de 12 mil pessoas, dos quais 3577 em prisão administrativa. Só durante o mês de Maio, foram ordenadas mais de 700 prisões. Da Faixa de Gaza, estima-se que estejam encarceradas 3500 pessoas; quarenta e quatro palestinos oriundos daquele território morreram nas prisões, sob tortura ou sem a assistência médica que a sua condição exigia.

Esta não é uma guerra comum. Aqui, o alvo, além das pessoas, são as árvores e as pedras, os edifícios, escolas, hospitais e centros de saúde, as padarias, os parques infantis e os clubes desportivos, os cemitérios, as habitações, os caminhos, a água, os animais e as plantas, a paisagem, as cores e o perfume dos lugares, a memória, a própria imaginação e com ela a possibilidade de pensar uma existência que vá além do intervalo de tempo que medeia entre dois bombardeamentos. Tudo transmitido em tempo real, os gritos de desespero, os esgares de horror, os olhares esbugalhados e perdidos, os corpos consumindo-se em chamas.

Compreendemos bem, desde o início, a natureza particular desta guerra, porque sabemos que as suas raízes mergulham num passado de setenta e sete anos de limpeza étnica. Com coragem e determinação, enfrentando intimidações e chantagens, assumimos as nossas responsabilidades, tomámos partido, pelo ocupado contra o ocupante, pelo oprimido contra o opressor. Empunhámos a bandeira da Palestina e levámo-la a todos os lugares deste país, de norte a sul até às ilhas. Fá-lo-emos na próxima quarta-feira na manifestação convocada para o centro de Lisboa. Continuaremos a fazê-lo sempre, mesmo que a voz nos doa, que amiúde as lágrimas se soltem e a raiva nos consuma. Com a nossa acção organizada e persistente, fomos capazes de erguer um movimento de opinião que fez coro com o clamor dos povos que por todo o mundo se levanta em solidariedade com o povo palestino. Não conseguimos ainda que o governo português reconhecesse o Estado da Palestina nos termos do direito internacional, em particular das resoluções das Nações Unidas, mas fomos capazes de colocar à deriva barcos que hasteavam o pavilhão português carregados com combustível militar para Israel e dessa forma travar o envolvimento do nosso país na carnificina. Se o muro de suporte político e militar de Israel começa a abrir as primeiras brechas, isso deve-se à insuperável capacidade de luta e resistência do povo palestino, mas resulta também da acção dos movimentos de solidariedade, que precisamos de alargar e reforçar.

Contra todas as evidências, há ainda quem evite falar em genocídio, quem insista em considerar a acção de Israel sob um prisma reactivo, talvez agora já desmesurado, mas na origem justificado; quem se recuse a admitir que, para o Estado de Israel, a violência tem um carácter sistémico e estrutural porque é ela e só ela que, em última análise, pode realizar o projecto de uma Palestina sem palestinos pelo qual, desde a sua origem e até hoje, suspiram os seus fundadores e dirigentes, de todas as cores e inclinações. Há quem, sensibilizado pelo sofrimento infligido às crianças palestinas, olhe para Gaza como lugar de catástrofe, como se de um terramoto se tratasse, e não como o resultado de uma acção planeada e executada por mão humana, um crime hediondo que é imperativo julgar; e quem genuinamente tocado pela dor das suas mães, olhe o povo palestino como uma vítima passiva, sem o reconhecer como o actor soberano do seu destino, criador de arte e cultura, protagonista único da sua legítima luta de libertação. 

É a essas e a esses que nos dirigimos, para lhes dizer: Gaza marcará para sempre as nossas vidas, desenganem-se se vos parece, aquele, um lugar distante. A Palestina é o espelho do tempo que vivemos e da ordem que ambiciona o governo do mundo, erguida sobre a desumanização do outro, o exercício cego, indiscriminado, mas sofisticado da brutalidade, a mentira, o cinismo e a hipocrisia, a indiferença ante o sofrimento humano, o egoísmo, a injustiça e a humilhação do semelhante. Em Gaza, joga-se o futuro da humanidade, a consciência de que tal como se estabelece na Declaração Universal dos Direitos Humanos, «Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.» Não pudemos salvar a vida da pequena Hind Rajab, mas estamos ainda a tempo de fazer com que o seu sacrifício não seja sepultado sob o silêncio, que os responsáveis por esses crimes, os executores, os mandantes, os cúmplices, quem armou, quem financiou, quem justificou, sejam julgados; que a dor, insuportável, de Alaa al-Najjar, a médica palestina do hospital Nasser, em Khan Younis, a quem uma bomba matou 9 dos seus dez filhos, não seja em vão, e que a liberdade, a justiça e a paz seja enfim realidade na Palestina.  

Todas e todos estão convocados e ai de quem faltar à chamada! A história não vos perdoará. 


Carlos Almeida é investigador doutorado do Centro de História da Universidade de Lisboa e vice-presidente do MPPM.


Este é o texto da intervenção de Carlos Almeida no Painel 3 – Solidariedade e Cooperação do IV Encontro pela Paz realizado no Seixal em 31 de Maio de 2025

Segunda, 02 de Junho de 2025 - 10:52