Guterres continua a branquear crimes de Israel contra crianças palestinas
O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, acrescentou as forças militares da Rússia à sua “lista da vergonha” anual de partes em conflitos armados que cometem graves violações contra crianças, mas continua a omitir as forças armadas e as milícias de colonos israelitas, apesar de os seus actos criminosos estarem amplamente documentados em relatórios da organização.
Para Jo Becker, directora de Advocacia da Divisão dos Direitos da Criança da Human Rights Watch (HRW), «este facto envia uma mensagem ambígua sobre a vontade da ONU de responsabilizar governos poderosos.»
Numa declaração divulgada na passada terça-feira, Jo Becker considera que «a contínua omissão de Israel na “lista da vergonha” presta um mau serviço às crianças palestinas. O relatório do Secretário-Geral considera que as forças israelitas foram responsáveis por vitimar 975 crianças e por 110 ataques a escolas e hospitais em 2022. A ONU atribuiu às forças israelitas, entre 2015 e 2020, mais de 6700 mortes ou ferimentos de crianças palestinas. Embora o Secretário-Geral nunca tenha incluído Israel na sua lista, incluiu outras forças ou grupos responsáveis por muito menos violações.»
«Globalmente, as violações contra crianças ocorreram numa escala chocante em 2022», diz Jo Becker. «A ONU verificou mais de 24 000 casos em que forças ou grupos armados mataram ou feriram crianças, as submeteram a violência sexual, rapto ou recrutamento como soldados, ou atacaram escolas e hospitais. Mais de metade das violações ocorreram na República Democrática do Congo, em Israel/Palestina, na Somália, na Síria e na Ucrânia.»
«A contínua relutância do Secretário-Geral em responsabilizar as forças israelitas por violações maciças coloca muitas crianças em risco», alerta a directora da HRW, que acusa Israel e outros países de recorrerem a lobbies agressivos e, nalguns casos, até à chantagem, para se manterem fora da “lista da vergonha”.
Palestina chocada
Quem se mostra também chocado com a decisão de Guterres é o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Expatriados da Palestina (MNEE) em declaração ontem tornada pública.
«Israel é um violador em série dos direitos das crianças palestinas. As provas são claras e inequívocas. Israel, as suas forças de ocupação e as milícias de colonos mataram e feriram mais de 7000 crianças palestinas só nos últimos oito anos, com total impunidade. […]. Todos estes crimes e outros mais estão exaustivamente documentados pelos organismos competentes das Nações Unidas e pelos Procedimentos Especiais. É por isso que são incluídos todos os anos nos relatórios do Secretário-Geral», refere o MNEE.
«Com a sua omissão, o Secretário-Geral encorajará Israel a continuar a sua negação unilateral e grotesca da aplicabilidade do direito internacional, incluindo a Convenção sobre os Direitos da Criança, às crianças palestinas [..] A protecção das crianças em conflitos armados é a principal obrigação moral, jurídica e política do Secretário-Geral. As crianças palestinas não podem ser a excepção. Isso é inaceitável», conclui o MNEE na sua declaração.
Duplicidade de critérios
Num artigo de opinião hoje publicado, Andrew Mitrovica, colunista da Al Jazeera, comenta a duplicidade do Secretário-Geral da ONU: «Guterres decidiu incluir as forças regulares e os mercenários russos [na “lista da vergonha”] depois de ter ficado "chocado" e "horrorizado com o elevado número de violações graves contra crianças na Ucrânia", em 2022. […] No entanto, aparentemente, Guterres não ficou suficientemente "chocado" ou "horrorizado" para romper com o precedente e reconhecer finalmente que os soldados israelitas são tão culpados como os soldados russos de "cometerem graves violações contra crianças".»
Recordando que vinte e sete crianças palestinas já foram mortas pelas forças israelitas este ano. em Gaza e na Cisjordânia, que em 2022, 42 crianças palestinas foram mortas e 933 feridas pelos militares israelitas, e que em 2021, as forças israelitas mataram 78 crianças palestinas e feriram outras 982, Mitrovica comenta: «Em qualquer medida humana, estes números são um reflexo impressionante do longo e vergonhoso historial de Israel de matar e mutilar crianças palestinas no corpo, na mente e no espírito.»
Mitrovica recorda declarações de Guterres, em 5 de Junho, em que se manifestava «profundamente preocupado com o número de crianças mortas e mutiladas pelas forças israelitas durante as hostilidades e através do uso de munições reais» e em que repetia que estava «profundamente preocupado» com o «uso excessivo da força contra crianças» por Israel, para questionar: «No cálculo da ONU, quando é que a morte e a mutilação de crianças por soldados passa de "profundamente preocupante" a "aterradora" e "vergonhosa"?»
Na opinião de Andrew Mitrovica, «Guterres agravou a sua flagrante duplicidade de critérios ao sugerir, de forma obscena, que Israel tinha merecido alguma consideração por ter matado e mutilado menos crianças palestinas em 2022 do que no ano anterior.»
Foto: Funeral de Mohammad Tamimi, de 3 anos, baleado na cabeça por soldados israelitas