Gaza 2020: uma morte anunciada

Num relatório divulgado em 2012, a  ONU previa que a Faixa de Gaza se tornaria inabitável em 2020.  Mas os peritos dizem que essa ruptura já ocorreu há muito. Os seus quase dois milhões de habitantes sofrem de escassez crónica de alimentos, água e medicamentos e acesso a cuidados médicos. Estão sujeitos a racionamento de energia, a uma desertificação crescente, a poluição grave da água e do ar e recorrentes ataques israelitas.

Um artigo de Megan O’Toole publicado no Middle East Eye em 9 de Dezembro passado traça um retrato da situação dramática em Gaza no final de 2019. A taxa de desemprego aproxima-se dos 50%. Mais de dois terços dos agregados familiares têm insegurança alimentar e só 3% da água do aquífero é própria para consumo. O sistema de saúde está em colapso com uma redução para quase metade do número de médicos e enfermeiros por habitante e escassez de medicamentos. O fornecimento de energia eléctrica não satisfaz um terço das necessidades. A economia está em queda livre: o PIB per capita, que era de 1,938 dólares em 2012, caiu para 1,431 dólares em 2018.

Um bloqueio criminoso

A Faixa de Gaza está sujeita a um bloqueio imposto por Israel desde 2007, na sequência da vitória do Hamas numas eleições que os observadores internacionais consideraram unanimemente que, não obstante as restrições impostas pela ocupação, foram livres, transparentes e justas e reflectiram a vontade popular. 

O bloqueio restringe as importações e exportações, assim como a movimentação de pessoas. Na barreira que cerca todo o território da Faixa de Gaza há só dois postos de atravessamento para pessoas: Rafah, para o Egipto, e Erez, para Israel; um terceiro posto, Kerem Shalom, destina-se a mercadorias autorizadas. Os horários são muito restritos e, por vezes, os postos são encerrados por longos períodos. A pesca só é permitida até ao limite de 6 milhas náuticas (cerca de 11 km). Numa faixa de 1 km ao longo da fronteira com Israel – onde as terras são mais férteis – a agricultura está interdita ou é praticada com risco de vida. Numa fria manifestação de cinismo, nos primeiros anos do bloqueio Israel calculou a quantidade mínima de calorias de que cada habitante de Gaza necessitava para sobreviver, e só essa quantidade de ajuda alimentar era autorizada a entrar no território.

Israel está agora no processo de construção de outro muro em torno de Gaza. A nova barreira irá elevar-se a 6 metros de altura e acompanha os 65 km do traçado de uma barreira subterrânea, que também já está em construção, isolando ainda mais Gaza.

As agressões israelitas

A Faixa de Gaza é continuamente alvo de agressões das forças armadas israelitas. O mais recente e mais mortífero ataque em larga escala ocorreu em 2014, com um balanço final de 2251 vítimas mortais entre os palestinos, das quais 551 crianças e 299 mulheres. O número de feridos ascendeu a 11 231. A agressão não só causou uma enorme perda de vidas como provocou danos sem precedentes nas infra-estruturas públicas, deixando centenas de milhares de pessoas sem acesso a electricidade, água potável ou cuidados de saúde. A maioria da população de Gaza perdeu os seus meios de subsistência e muitas famílias perderam a sua habitação.  Um quinto das casas e muitas das infra-estruturas ainda estão inutilizáveis, seis anos após a invasão israelita, devido às restrições à entrada dos equipamentos e materiais indispensáveis.

A ajuda humanitária

A UNRWA é uma agência da ONU criada em 1949 para dar assistência aos palestinos vítimas da limpeza étnica levada a cabo pelas forças sionistas antes e depois da criação de Israel. Actualmente a assistência da UNRWA é imprescindível para a sobrevivência dos cerca 5,3 milhões de refugiados palestinos.

Diferentemente de outras agências da ONU, que são financiadas pelo orçamento desta, a UNRWA é financiada quase exclusivamente por contribuições voluntárias dos Estados membros. A maioria da população de Gaza depende da UNRWA para o emprego, para a saúde, para a educação e para a ajuda económica. A recente decisão da administração estado-unidense de retirar o financiamento à UNRWA veio agravar ainda mais, se possível, a situação dos habitantes do território.

A Grande Marcha do Retorno

Desde 30 de Março de 2018, milhares de palestinos têm-se manifestado pacificamente, todas as sextas-feiras, junto à barreira que separa Gaza do território palestino em que Israel proclamou o seu Estado em 1948. A Grande Marcha do Retorno exige o fim do bloqueio e o direito de retorno dos refugiados forçados pelas forças ocupantes a deixar as suas casas em 1948 e 1967. (Os refugiados e deslocados internos constituem quase 80% da população de Gaza.) As forças israelitas já mataram mais de três centenas de participantes nestes protestos e mais de 30 000 foram feridos, sendo que a metade deles requer hospitalização. A proporção pouco usual de feridos deve-se ao facto de os atiradores especiais israelitas procurarem intencionalmente incapacitar os manifestantes visando os membros ou a face.

Que fazer?

A situação em Gaza está amplamente documentada em relatórios de organizações internacionais e até de organismos e agências das Nações Unidas. Apesar disso, a comunidade internacional ainda se recusa a agir. Para a União Europeia, Israel é um parceiro comercial privilegiado e beneficiário de generosos fundos para investigação científica que tem sido denunciada como de possível dupla utilização civil e militar.

Por isso, 2020 terá que ser o ano em que organizações da sociedade civil em todo o mundo vão exigir que os seus governos abandonem a sua letargia cúmplice e tomem medidas concretas para pressionar Israel a levantar o cerco e acabar com a crise humanitária artificialmente criada em Gaza.

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