«A farsa de “pausas humanitárias” e a força da Organização das Nações Unidas», por António Bernardo Colaço

Por estranho que pareça, este escrito não aborda a barbaridade do ataque/Hamas, nem a implacável “autodefesa” de Israel, nem a calculada indiferença do Egito, nem a frágil fogachada do Hezbollah, nem a farsa do envolvimento dos países árabes da região. Procuro assim evitar comentar aspetos desta guerra, porventura tema grato de uma certa comunicação social e comentadores procurando animar a morbidade oculta do ser humano face ao sofrimento alheio.

Em apreciação estão as chamadas pausas humanitárias e o papel da ONU nesta contenda, enquanto organismo representativo internacional. Com efeito, os EUA e a EU tem vindo virtuosamente sugerindo estas pausas para alimentar e cuidar os palestinianos, que o humanismo do governo de Israel decidiu ampliar de 4 para as 7 horas. Sem ironia ou gracejo, esta modalidade de pausas faz lembrar um pouco a Guerra do Solnado – parar a guerra para recomeçar e matar. As propostas desses países carregam o mesmo tipo de mensagem, apenas para o pior – primando pela sua natureza farsante, contendo o que de mais desumano pode existir na natureza humana.

O inferno de Dante

É possível falar-se de uma “pausa humanitária” numa guerra, essencialmente virada para matar e destruir? Como distribuir alimentos no torpor de uma atmosfera plena de poeira e fumaça dos bombardeamentos intensivos, enquanto uns carregam os cadáveres para locais mais distantes para serem enterrados ou simplesmente abandonados, tudo no meio de pedras, lixo e restos de balas e misseis, do barulho ensurdecedor de sirenes, bombas, tanques e de um tiroteio traiçoeiro a competir com os gritos de ansiedade e choro da população forçada a defender-se, fugindo uns, outros carregando crianças e feridos para logo a seguir balas traiçoeiras os fulminarem  implacavelmente de morte, após uma refeição mal digerida?

É no meio deste torpor existencial, durante 4/7 horas que se irão processar a “conta gotas” a entrada de caminhões da ONU para alimentar a população esfomeada e carenciada, nunca se sabendo como, quem, e quantos serão os “beneficiados”, com luz e eletricidade cortadas e os hospitais a aproximarem-se de cemitérios. E assim se tranquilizam as consciências.

Os pezinhos de lã

Alimenta-se o sofrimento para logo a seguir entrar no domínio da incerteza de vida ou mais provavelmente da morte. É neste ignominioso jogo de ficcionado altruísmo que reside o farisaísmo que caracteriza os políticos envolvidos noutros conflitos desastrosos como os de Iraque, Líbia, para citar alguns, e do que os náufragos no Mediterrâneo são a expressão mais acabada.

Ao solicitar moderação na legítima defesa israelita, estes mesmos políticos enfiaram-se de cabeça na mais ignóbil tarefa de legitimar o fenómeno de guerra, admitindo à partida o que sempre sabiam ia ocorrer – a tentativa de aniquilação de um povo vitalmente atrofiado animado sob a quimérica promessa de um Estado Palestiniano. A guerra já leva mais de um mês de duração.

O rescaldo

Estamos em pleno séc. XXI. A guerra Israel/Hamas, transformou-se já no conflito Israel/Palestina e inscreve-se como o acontecimento que no presente mais tem abalado o mundo, pela sua violência, crueldade e desumanidade. Há notícia de 101 funcionários das Nações Unidas em missão de paz em Gaza terem perecido; de quatro hospitais estarem inativos por falta de água e eletricidade cortada pelo governo israelita. Segundo o nosso MNE (13.11.2023), em cinco semanas do conflito em Gaza já morreram tantas pessoas como em 23 meses de combate na Ucrânia. A comunicação social dava conta de 11 000 mortos e 27 000 feridos, números que são de molde a ultrapassar de longe aquilo que se pode considerar efeitos colaterais do conflito por parte de quem quer apenas destruir a armadura operacional de um grupo terrorista.

Justificativos para a guerra

Tudo isto não condiz com o propósito do governo de Netanyahu quando afirma agora que o objetivo primacial é o retorno de reféns. É uma desculpa camuflada e sobretudo ilusória. Sabe-se que a situação de reféns se resolve por negociação e não pelas armas. Nas circunstâncias do caso, os desenfreados bombardeamentos das Forças Israelitas até põem em perigo a vida desses reféns. Basta só haver um engano no bombardeio. Em termos humanos, temos para nós que a vida de um refém, vale tanto quanto a de um civil inocente e não há notícia de uma criança palestiniana nascer terrorista.

E… a apregoada supremacia israelita?

Se, o que se pretende é a destruição do potencial bélico do Hamas é então caso para questionar a supremacia do aparelho militar israelita configurado como o 4º melhor do mundo ou ainda a capacidade dos seus serviços secretos, tidos como dos mais eficazes.

Seja como for, e como no início asseguramos, não é propósito estar-se a prognosticar os objetivos próximos ou longínquos de Israel ou quanto ao fatalismo do projetado “Estado Palestiniano”.

A ONU e a sua Carta

O papel determinante que neste momento se aguarda é o da Organização das Nações Unidas, o areópago indiscutivelmente responsável pelos destinos dos povos, como uma “super-partes” isenta para acudir aos problemas e conflitos que martirizam Nações e Povos.  Assim procedeu no passado. Espera-se ansiosamente que o faça no presente.

A Carta das Nações Unidas prevê nos seus artigos 5º e 6º a suspensão ou a expulsão do seu seio, da Parte (sic. Nação) que se mostre renitente ou se recuse a cumprir as Resoluções do Conselho de Segurança. Israel talvez merecesse uma dessas medidas, pela sistemática recusa dos seus Governos em não cumprir as dezenas de Resoluções do Conselho de Segurança condenando as centenas de ilegais ‘colonatos’ com expulsão de residentes palestinianos, e particularmente pela postura desrespeitos do seu Embaixador face á ONU. Penso, no entanto, que seria uma medida contraproducente, pois corria-se o risco de Israel entrar em roda livre, não se livrando então do qualificativo de um “rogue-State”. Resta-nos, assim, os normativos dos artigos 42º,43º,44º,45º, e 46º da Carta, que permitem fazer uso de força, porventura socorrendo-se da sua Comissão de Estado Maior.

A esperança nunca morre

Seria a única forma desse devastador conflito ficaria sob direto controlo da ONU, começando por um imediato cessar-fogo, a que se seguiriam as diligências tidas por necessárias para a libertação dos reféns, propiciando o calar das armas beligerantes, o regresso dos palestinianos para o que resta das suas casas e aldeias e dando início a uma descompressão gradual da mórbida tensão coletiva das duas partes.

Então sim, estariam criadas as mínimas condições para o fornecimento condigno de alimentos às pessoas carenciadas, restabelecendo o direito humano à saúde, evitar mortes inocentes e até fazer frente ao antissemitismo.

Lisboa, 16 de Novembro de 2023

DESAFIO FINAL ISRAEL /PALESTINA – UMA GUERRA ANUNCIADA

Tentar destruir Hamas não é matar civis palestinianos, não é cortar o abastecimento de água, eletricidade e alimentos, tornando inoperantes os hospitais, destruir edifícios e infraestruturas e reduzir paulatinamente Gaza a escombros.

Segundo Netanyahu, a guerra contra o Hamas irá decorrer em três etapas. Pela forma como está a ser desencadeada, desconhece-se de que tipo se revestirão as outras etapas, salvo se terminarem como a anexação pura e simples, da Faixa de Gaza no Estado de Israel como território “de terra de ninguém” ou “abandonado”, assim contribuindo decisivamente para o fim da solução de “Dois Estados”. Com efeito, não se sabe a que título Israel está a instalar instabilidade na Cisjordânia, esta sob controlo da Autoridade Palestiniana.

O mais grave é que esta guerra está a decorrer sob o declarado beneplácito de EUA e da EU. É simplesmente farisaico estará a apelar-se à “proporcionalidade” no exercício do direito de defesa, numa altura em que a posição militar israelita, afirma que não se pode destruir Hamas sem atingir os civis. Custa a acreditar nesse posicionamento, atendendo ao enorme poderio militar de que Israel dispõe, como pela superior capacidade do seu serviço de informação. Tudo isto contribui para a manifestação, agora também do lado de Israel, para “a solução final” relativamente aos palestinianos, com os perigos que deste posicionamento possam decorrer.

Estamos em pleno séc. XXI, numa altura em que valor e o respeito pela dignidade humana se acentuam. Neste contexto, a vida de um civil sujeito a ser morto aleatoriamente em guerra vale, no mínimo, tanto quanto a de um refém. Os dois merecem ser salvos. O Conselho de Segurança da ONU, sede apropriada e privilegiada onde os problemas entre as Nações se resolvem tem seguramente uma posição definitiva e clara a adotar nesta contenda, nomeadamente pelo controlo militar sob seus auspícios e onde só valores de convivência social imperem antes que o chauvinismo político, religioso ou cultural de qualquer espécie aproxime a humanidade do abismo.

Lisboa, 24 de Outubro de 2023

ESTADO DE ISRAEL - HAMAS OU “O HOMEM LOBO DO HOMEM”

Ainda decorre a incógnita sobre o desfecho dos acontecimentos ocorridos no Médio-Oriente a partir da invetiva do Hamas contra Israel ocorrida em 7 de Outubro de 2023 e o desforço vingativo deste país pelo ataque sofrido. Vão-se ceifando vidas (não faço referência a crianças, mulheres e idosos, para não ferir a sensibilidade do leitor(a)), destroem-se edifícios e infraestruturas e corta-se os abastecimentos de água e eletricidade e torna-se ainda inoperante o abastecimento de alimentos aos palestinianos da Faixa de Gaza.

Abstenho-me de comentar ou procurar atiçar a sensibilidade do leitor pelas evidentes consequências nefastas desta situação e que tem alimentado o serviço das agências noticiosas. Apenas relembro que conflitos do tipo em causa, matam indiscriminadamente, sem respeito à condição humana.

Ao contrário do que tem sido veiculado, não se trata de ser pró ou contra qualquer das partes em confronto – Estado de Israel e Hamas –, ou sequer assumir o papel de neutralidade nesta contenda, mas apenas ajuizar da postura ética e existencial das partes em confronto, da avaliação humanista que alegam e do formato de legitimidade representativa que dizem ter. Não menos importante será de ponderar a responsabilidade de terceiros países ou organismos internacionais, os quais, na prática aparentam ter dificuldade ou relutância em assumir os valores de liberdade, de democracia e de direitos humanos que dizem defender.

Como ponto de partida figura o Conselho de Segurança da ONU (CS/ONU), que rejeitou no dia 17 de Outubro, a proposta russa sobre o Médio Oriente onde se destacavam o cessar-fogo humanitário e condenação de todos os atos de terrorismo, rejeição que ficou a dever-se apenas por não conter expressamente a condenação do Hamas. Não importa os países que votaram contra, a favor ou que se abstiveram. O que se indaga é: o que adiantaria a menção de condenação do Hamas, sabido que todos os atos de terrorismo são aí condenados, e que a aprovação da Proposta poderia legitimar a intervenção direta das Forças Militares da ONU?

É sabido que o Hamas (Movimento Islamita de Resistência) procura rivalizar a já internacionalmente reconhecida representatividade da Autoridade Palestiniana (AP), oriunda da OLP (Organização de Libertação de Palestina) quanto à liderança do processo de libertação do povo palestiniano. Há consciência que, no atual momento, este divisionismo é de molde a gerar o enfraquecimento da luta da libertação na perspetiva do projeto de dois Estados – o de Palestina e o de Israel. Sendo a AP de estirpe secular e o Hamas islamita, tudo leva a supor que a vertente religiosa domina o propósito do Hamas no sentido de contestar a existência de um Estado Judeu. Daí a violência do dia 7 de Outubro a que se seguiu a do Estado de Israel, também calibrada em termos religiosos.

Sucessivos governos de Israel, tem-se animado no seu projeto expansionista consubstanciado na conhecida prática de ocupação de terras palestinianas, em simultâneo da expulsão dos seus originários habitantes e subsequente instalação de “colonatos” israelitas. A Resolução 2334 do Conselho de Segurança da ONU de 26 de Dezembro de 2016 tirada por unanimidade qualificou esta ato, que perdura já há anos como não tendo validade legal. Se a esta usurpação de terras alheias, acrescentarmos a forma indigente como os palestinianos são tratados nos terrenos ocupados, as débeis condições de vivência, o sistema de ‘apartheid’ a que são submetidos, não sendo menos relevante o “Muro de Cisjordânia” considerado ilegal pelo Tribunal Internacional de Justiça (Resolução da Assembleia Geral da ONU de 2 de Agosto de 2004) e ainda das dezenas de resoluções do CS/ONU por cumprir,  temos aí a expressão acabada de Israel como um autêntico “rogue-nation” ( do inglês rogue=patife, intrujão).

Sem prejuízo da invocação por Netanyahu sobre o sofrimento e extermínio de cerca de 6 milhões de judeus pelo Nazismo, o que pensará hoje um(a) sobrevivente do Holocausto sobre as agruras a que os palestinianos são sujeitos pelos Estado de Israel? No contexto atual, conhecida a superioridade militar israelita, pedir proporcionalidade a Israel nesta contenda é meramente quimérico.

A realidade histórica demonstra que as lutas reivindicativas de natureza social ou política quando impregnadas do fator religioso estão sempre votadas ao insucesso. A natureza dinâmica de lutas sociais envolvendo a religião faz perigar o chauvinismo doutrinário, dando origem ao fanatismo legitimando confrontos entre comunidades, gerando diferenciações sociais, provocando violência e trucidando a história. Em contexto politizado, a determinante religiosa é altamente incendiária, já que foge ao controlo racionalizado do comportamento individual ou grupal. Esta contextualização torna-se mais gravosa quando a influência religiosa é entrosada pelo próprio poder ou componente política, do que o Estado de Israel e o Hamas, enquanto “Movimento Islamita de Libertação” são exemplos acabados.

A questão, tal como se colocou no início, não concerne os atos que foram praticados, os que estão a ser praticados ou que ainda virão a sê-lo. O que se viu praticado pelo Hamas, mais que terrorista, é desumano; a resposta de Israel, mais do que legitima defesa, é desumana. Neste contexto, os apoios vociferados pelos políticos dos EUA, Reino Unido,  e a EU não passam de afirmações adminiculares proveniente de personalidades que ocupando altos cargos não passam de vulgares individualidades que se limitam a ditar palavras de conveniência, destros a apoiar Israel em visitas pontuais mas incapazes de criticá-lo exigindo que respeite e cumpra as dezenas de Resoluções que o CS/ONU determinou – ou seja, o fim dos colonatos e da usurpação de terras palestinianas – fator determinante para uma solução do conflito Israel -Palestiniano que já dura anos!

E a solução está aí. Se a política é a ‘arte do possível’ de nada valerá se essa possibilidade não estiver impregnada de um mínimo ético, ou seja, no respeito pela condição e dignidade humanas. Daí que, o respeito pela regra do comportamento social politicamente expressa no respeito pelo direito internacional, e do qual fazem parte as Resoluções do Conselho de Segurança e o diálogo como via privilegiada de resolução de conflitos, se tornem a base de convivência sã entre os povos palestinianos e israelitas.

Lisboa, 20 de Outubro de 2023


António Bernardo Colaço é Juiz-Conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça


Os artigos assinados publicados nesta secção, ainda que obrigatoriamente alinhados com os princípios e objectivos do MPPM, não exprimem necessariamente as posições oficiais do Movimento sobre as matérias abordadas, responsabilizando apenas os respectivos autores.

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