Expansão colonial de Israel provoca transferência forçada de comunidades beduínas

Há mais de duas décadas que Israel vem a aplicar a sua «política de esterilização» nas regiões a leste de Jerusalém, na zona sul de Hebron e na vizinhança do Vale do Jordão, deslocando as comunidades beduínas e confinando-as a enclaves prescritos e utilizando todas as tácticas concebíveis para as forçar a sair para dar lugar à instalação ou expansão dos colonatos ilegais.

Quem o afirma é Suhail Khalilieh, director da Unidade de Monitorização de Colonatos do Instituto de Investigação Aplicada de Jerusalém (ARIJ) em entrevista ao Middle East Eye. A razão é que as comunidades beduínas palestinas, há muitas décadas vivendo na região, são um obstáculo à concretização dos planos de expansão colonial de Israel.

Num documento de Janeiro de 2019 sobre comunidades beduínas palestinas em risco de transferência forçada, as Nações Unidas esclarecem que a transferência forçada não exige necessariamente o recurso à força física por parte das autoridades, mas pode ser desencadeada por circunstâncias específicas que deixam os indivíduos ou as comunidades sem outra alternativa que não seja a de partir – é o chamado ambiente coercivo.

E, para a ONU, certas políticas e práticas israelitas aplicadas nestas zonas criam um ambiente coercivo, que gera pressão sobre os palestinos para que abandonem as suas comunidades. Estas incluem a demolição e a ameaça de demolição de casas, escolas e meios de subsistência; despejos forçados; negação de infra-estruturas de serviços; restrições de acesso a terras agrícolas e de pastagem; fraca aplicação da lei contra colonos violentos; promoção de planos de «deslocalização»; e revogação de direitos de residência, entre outros.

O fim da comunidade palestina de Al Baqa’a…

Al Baqa’a era uma comunidade beduína palestina localizada a noroeste de Jerusalém. O seu fim é paradigmático do que se passa com estas comunidades.

Segundo relata o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas nos Territórios Palestinos Ocupados (OCHA), em artigo recentemente publicado, numa visita efectuada em 2015 encontrou 19 agregados familiares compostos por 128 pessoas, incluindo 65 crianças. No passado dia 28 de Julho, os dois últimos agregados familiares, compostos por 18 pessoas, incluindo 11 crianças, abandonaram o local. Como noutras comunidades seminómadas palestinas, foi a violência dos colonos que os forçou a partir.

Tudo começou em 20 de Junho, quando um grupo de extremistas israelitas estabeleceu um colonato bem no meio da comunidade palestina e deu início a uma campanha de violência impedindo o acesso dos palestinos às suas terras e às áreas de pastagem, o que prejudicou gravemente as suas práticas tradicionais de pastoreio e a sua principal fonte de rendimento.

Em 7 de Julho, os colonos israelitas incendiaram uma casa palestina, com duas pessoas no interior. Os vizinhos conseguiram apagar o fogo, evitando vítimas, mas a pequena casa, onde viviam seis pessoas, ficou destruída, deixando-as desalojadas.

Em 10 de Julho, sete agregados familiares palestinos desmantelaram as suas casas e estruturas de subsistência e abandonaram a sua comunidade. Estas 36 pessoas – incluindo 20 crianças, oito mulheres e oito homens – representavam dois terços da comunidade. E em 28 de Julho, com a saída das duas últimas famílias, terminou a presença palestina em Al Baqa’a.

… e também de Ras al Tin

Segundo o OCHA, em 8 de Agosto deste ano, as famílias que ainda restavam em Ras al Tin, uma comunidade de pastores na zona C da Cisjordânia central, desmantelaram as suas casas e propriedades e partiram para locais mais seguros. Estas famílias contam-se entre os 89 vizinhos de 12 agregados familiares que abandonaram a comunidade nos últimos dias, invocando como principais razões a violência e a intimidação por parte dos colonos israelitas e a redução das terras de pastagem. Entre eles encontravam-se 39 crianças. A comunidade está agora vazia.

No ano passado, 100 palestinos tinham deixado Ras al Tin, invocando razões semelhantes. Na véspera da sua partida, toda a comunidade era composta por cerca de 35 agregados familiares, incluindo 240 pessoas, das quais 150 eram crianças. As suas casas situavam-se em cinco locais distintos e adjacentes.

O abandono forçado de Ein Samiya

Na segunda-feira, 22 de Maio, a comunidade palestina de pastores de Ein Samiya, na província de Ramala, começou a desmantelar e a abandonar as suas casas, invocando como principal motivo a violência dos colonos. Até essa semana, Ein Samiya albergava 178 pessoas, incluindo 78 crianças.

«Estas famílias não estão a sair por opção própria; as autoridades israelitas têm demolido repetidamente casas e outras estruturas que lhes pertencem e ameaçaram destruir a sua única escola. Ao mesmo tempo, as terras disponíveis para o pastoreio do gado diminuíram devido à expansão dos colonatos e tanto as crianças como os adultos foram sujeitos à violência dos colonos», afirmou a Coordenadora Humanitária em Exercício para os Territórios Palestinianos Ocupados, Yvonne Helle. «Estamos a assistir às trágicas consequências das práticas israelitas de longa data e da violência dos colonos».

Assédio dos colonos de Shilo a Qaboun

Suleiman Nasr, um pastor de 44 anos, relatou ao Middle East Eye que não teve outra hipótese senão desmontar a tenda que abrigava sua família de sete pessoas e partir: «Praticamente todos os dias, os nossos acampamentos e o nosso gado são alvo de ataques. Atiram-nos pedras, as nossas crianças são sujeitas a violência e as nossas mulheres a abusos verbais. Estes agressores [oriundos do colonato ilegal de Shilo] empunham bastões e instrumentos cortantes contra nós, enquanto tentam roubar o nosso gado.»

A família de Nasr integrava um grupo de beduínos palestinos que residia há 45 anos nos povoados de Qaboun, a leste de Ramala, no coração da Cisjordânia ocupada. Algumas destas famílias provinham das terras do Naqab, a que os israelitas chamaram Negev quando o ocuparam em 1948. Actualmente, são mais uma vez obrigadas a abandonar as suas terras ancestrais, forçadas a sair devido ao ataque incessante do exército israelita e dos colonos.

Como a família de Nasr, outras famílias de Qaboun viram-se obrigadas a desmontar as suas tendas, arrumar os seus pertences e mudar-se para uma zona desabitada situada entre as aldeias de Al-Mughayyir e Abu Falah, a leste de Ramala. Não tinham outra opção, se quisessem escapar à violência dos colonos de Shilo.

A resiliência dos palestinos de Masafer Yatta

Masafer Yatta é um conjunto de 20 comunidades beduínas interligadas localizadas nas colinas do Sul de Hebron, cerca de 20 quilómetros a sul desta cidade. Os seus habitantes têm sido notícia pela sua luta persistente contra os esforços israelitas para os deslocar, desafiando as múltiplas deliberações dos tribunais israelitas que ordenam a sua expulsão.

Contrariando as pretensões israelitas de alargar os colonatos circundantes e anexar as suas terras, os residentes palestinos afirmam que se manterão firmes, inabaláveis no seu compromisso de permanecer. Em resposta, Israel instrumentaliza os seus colonos e soldados para criar o ambiente coercivo que force a sua saída.

Para Samir Hamamdeh, 57 anos, e a sua família, a criação de gado é o único meio de subsistência. No entanto, a sua existência é prejudicada pela imposição implacável de medidas israelitas destinadas a coagi-los a entregar as suas terras.

«Nasci aqui e as gerações que me precederam chamavam a esta terra a sua casa, muito antes de surgir a ocupação israelita. Após 1967, a vida tornou-se uma luta incessante devido às intermináveis hostilidades israelitas. […] As incursões dos colonos nas nossas terras e os assaltos esporádicos tornaram-se uma rotina sinistra. O nosso gado é roubado e, por vezes, brutalmente abatido. Eles entravam os nossos movimentos e limitam os nossos acessos, enquanto os soldados invadem as nossas habitações […]. A destruição de bens e os maus tratos físicos, marcados por espancamentos e linguagem depreciativa, tornaram-se a nossa provação quotidiana», declarou Hamamde ao Middle East Eye.

Este é o ano mais violento desde 2006

Desde o início de 2022 até à data, pelo menos 488 palestinos, incluindo 263 crianças, foram obrigados a abandonar as comunidades de Lifjim (46 pessoas, incluindo 21 crianças), Ras al Tin (188/101), Ein Samiya (132/68), Wadi as Seeq (35/21), Al Baqa’a (54/31), Wedadie (21/17) e Khirbet Bir al ‘Idd (12/4), em circunstâncias semelhantes, revela o OCHA. As comunidades de Ras al Tin, Al Baqa’a, Wedadie e Khirbet Bir al ‘Idd extinguiram-se.

A violência dos colonos israelitas tem vindo a aumentar em todo o território palestino. No primeiro semestre de 2023, as Nações Unidas registaram 591 incidentes relacionados com colonos em toda a Cisjordânia que resultaram em vítimas e/ou danos materiais de palestinos. Isto representa um aumento de 39% na média mensal, por comparação com 2022, que já tinha sido o ano com maior número de ocorrências desde 2006.

As demolições repetidas, a expansão dos colonatos, a perda de acesso às terras de pastagem e a violência dos colonos continuam a suscitar preocupações do OCHA quanto à situação humanitária das comunidades beduínas palestinas. Estas pessoas debatem-se com condições de vida terríveis, marcadas por graves défices de serviços fundamentais como a água e a electricidade. Os seus desafios são ainda agravados pelo acesso limitado a estabelecimentos de ensino e de saúde essenciais.

Os dados fornecidos pela ONU sublinham que mais de 70% dos residentes nestas comunidades são refugiados que foram expulsos por Israel em 1948 das suas habitações originais no sul da Palestina ocupada. A esmagadora maioria deles (90%) deles depende do pastoreio de gado como principal fonte de subsistência. A maioria das suas habitações foi marcada para demolição e 85% não têm acesso a água e electricidade.

Pode Israel estar a praticar crimes contra a Humanidade ou crimes de guerra?

A Quarta Convenção de Genebra – ratificada por Israel em 1949 e pela Palestina em 2014 – protege, expressamente, as pessoas que, «em qualquer momento e de qualquer forma, se encontrem, em caso de […] ocupação nas mãos de […] uma potência ocupante de que não sejam nacionais» (Artigo 4).

O Artigo 27 garante que as «pessoas protegidas têm direito, em todas as circunstâncias, ao respeito da sua pessoa, da sua honra, dos seus direitos de família […] Devem ser sempre tratadas com humanidade e devem ser protegidas, nomeadamente, contra todos os actos de violência ou ameaças de violência».

E para que não subsistem dúvidas sobre a responsabilidade do Estado, o Artigo 29 estipula: «A Parte no conflito em cujas mãos se encontrem as pessoas protegidas é responsável pelo tratamento que lhes for dispensado pelos seus agentes».

A Convenção proíbe a «coacção física ou moral sobre as pessoas protegidas» (Artigo 31), «qualquer medida susceptível de provocar o sofrimento físico ou o extermínio das pessoas protegidas» (Artigo 32), a punição colectiva, a pilhagem e as represálias (Artigo 33).

O Artigo 49 expressamente proíbe a instalação de colonos no território ocupado, bem como a transferência forçada da população nativa: «As transferências forçadas individuais ou colectivas, bem como as deportações de pessoas protegidas do território ocupado para o território da potência ocupante ou para o território de qualquer outro país, ocupado ou não, são proibidas, independentemente do seu motivo […] A Potência ocupante não deportará ou transferirá partes da sua própria população civil para o território que ocupa.»

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional estabelece, no seu Artigo 5.o, que «o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes: […] b) Os crimes contra a Humanidade; c) Os crimes de guerra […].»

O Artigo 7.o considera «crime contra a Humanidade», nomeadamente, «[…] d) Deportação ou transferência à força de uma população; […] h) Perseguição de um grupo ou colectividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo; […] j) Crime de apartheid […]».

O Artigo 8.o qualifica como «crimes de guerra», nomeadamente: «a) As violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos seguintes actos, dirigidos contra pessoas ou bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra que for pertinente: […] iv) Destruição ou apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária;[…] vii) Deportação ou transferência, ou a privação de liberdade ilegais […]» e ainda «b) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no quadro do direito internacional, a saber, qualquer um dos seguintes actos: […] viii) A transferência, directa ou indirecta, por uma potência ocupante de parte da sua população civil para o território que ocupa ou a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou para fora desse território […]».

A política colonial de Israel, assentando na transferência de parte da sua população para os territórios ocupados, e na apropriação de terras palestinas e na deslocação forçada de populações palestinas para a instalação de colonatos, viola a Quarta Convenção de Genebra e, pelo Estatuto de Roma, pode configurar a prática de crimes contra a Humanidade e de crimes de guerra.

Ler também:

Assembleia da República condena ordem de expulsão dos habitantes de Khan al-Ahmar por Israel
MPPM condena destruição anunciada da aldeia palestina de Khan Al-Ahmar
Israel vai leiloar salas de aula doadas pela UE que confiscou a palestinos da Cisjordânia ocupada
Israel quer expulsar beduínos para criar perigoso «corredor E1», que corta em duas a Margem Ocidental
Israel prossegue demolições no Vale do Jordão

 


Na imagem: Residentes de Ras al Tin após o confisco de 49 estruturas pelas forças israelitas em Julho de 2021

 

Print Friendly, PDF & Email
Share