«Em Gaza, Israel supera a sua maldade habitual», por Amira Hass

Artigo publicado no jornal israelita Haaretz em 3 de Abril de 2018
 
Na Faixa de Gaza, Israel mostra-se no seu pior. Esta afirmação não diminui de forma nenhuma a maldade, tanto deliberada como acidental, que caracteriza a sua política em relação aos outros palestinos — em Israel e na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental. Também não diminui os horrores dos seus ataques de vingança (também conhecidos por operações de represália) na Cisjordânia antes de 1967 ou dos seus ataques contra civis no Líbano.
No entanto, em Gaza, Israel supera a sua maldade habitual. Aí em particular faz com que soldados, comandantes, burocratas e civis exibam comportamentos e traços de carácter que em qualquer outro contexto seriam considerados sádicos e criminosos ou, na melhor das hipóteses, inadequados a uma sociedade civilizada.
O espaço só chega para quatro notas. Os dois massacres realizados por soldados israelitas contra os gazenses durante a guerra do Sinai em 1956 desapareceram da nossa consciência como se nunca tivessem acontecido, apesar da documentação.
Segundo um relatório do chefe da UNRWA apresentado às Nações Unidas em Janeiro de 1957, em 3 de Novembro, durante a conquista de Khan Yunis (e no decorrer de uma operação para recolher armas e reunir centenas de homens para encontrar soldados egípcios e combatentes palestinos), soldados israelitas mataram 275 palestinos — 140 refugiados e 135 moradores locais. Em 12 de Novembro (depois de os combates terem terminado), em Rafah soldados israelitas mataram 103 refugiados, sete moradores locais e um egípcio.
As recordações dos sobreviventes foram documentadas num livro de banda desenhada pelo jornalista e investigador Joe Sacco [Footnotes in Gaza]: cadáveres espalhados pelas ruas, pessoas encostadas a uma parede e baleadas, pessoas a fugir com as mãos no ar enquanto soldados atrás delas apontavam as espingardas, fazendo explodir cabeças. Em 1982, o jornalista Mark Gefen, do extinto diário em hebraico Al Hamishmar, recordou-se do seu serviço militar em 1956, incluindo as mesmas cabeças a explodir e corpos espalhados em Khan Yunis (Haaretz em hebraico, 5 de Fevereiro de 2010).
Apenas alguns meses após a ocupação da Faixa de Gaza em 1967, o investigador independente Yizhar Be’er escreveu: «Tomámos medidas práticas para diminuir a população de Gaza. Em Fevereiro de 1968, o primeiro-ministro [Levi] Eshkol decidiu nomear Ada Sereni para dirigir o projecto da emigração. O seu trabalho consistia em encontrar países de destino e encorajar as pessoas a irem para lá, sem que as impressões digitais do governo israelita fossem evidentes.»
«Sereni foi escolhida para esse trabalho por causa das suas ligações em Itália e da sua experiência na organização do ha’apala de sobreviventes do Holocausto após a Segunda Guerra Mundial», acrescentou, usando a palavra que designa a imigração ilegal para o Israel pré-Estado durante o mandato britânico.
«Numa das suas reuniões, Eshkol perguntou a Sereni, preocupado: “Quantos árabes é que você já despachou?”», escreveu Be’er. Sereni disse a Eshkol que havia 40 000 famílias de refugiados em Gaza. «“Se atribuir 1000 libras por família, será possível resolver o problema. Concordaria em resolver o problema de Gaza por quatro milhões de libras?”, perguntou ela, e respondeu ela própria: “Na minha opinião, é um preço muito razoável”» (site Parot Kedoshot, 26 de Junho de 2017).
Em 1991, Israel iniciou um processo para efectivamente aprisionar todos os moradores de Gaza. Em Setembro de 2007, o governo de Ehud Olmert decidiu um cerco total, incluindo a limitação de importações de produtos alimentares e matérias-primas e a proibição de exportações.
Burocratas do gabinete do Coordenador das Actividades Governamentais nos Territórios, com a ajuda do Ministério da Saúde, calcularam a quantidade de calorias necessárias cada dia para que os detidos na maior prisão do mundo não atingissem a linha vermelha da desnutrição. Os carcereiros — isto é, os burocratas e oficiais do exército — viram os seus actos como um gesto humanitário.
Nos ataques a Gaza desde 2008 tornaram-se mais claros os critérios israelitas para a matança permissível e proporcional de acordo com a ética judaica. Um combatente da Jihad Islâmica que está a dormir é um alvo adequado. As famílias de operacionais do Hamas, incluindo crianças, também merecem ser mortas. E também os seus vizinhos. E também quem aqueça água para o chá numa fogueira. E também quem toca na orquestra da polícia.
Por outras palavras, os israelitas passaram gradualmente por um processo de imunização às associações históricas. Portanto, não é de admirar que consigam justificar incondicionalmente o fogo letal contra manifestantes desarmados e que os pais se orgulhem dos seus filhos soldados que dispararam pelas costas sobre manifestantes em fuga.
 

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