«Dez anos passados, a Síria está quase destruída. De quem é a culpa?», por M. K. Bhadrakumar

No romance de George Orwell O Triunfo dos Porcos, os porcos governantes liderados por Napoleão reescrevem constantemente a história para justificar e reforçar a continuidade do seu próprio poder. A reescrita pelas potências ocidentais da história do conflito em curso na Síria parece saída de Orwell.

A declaração conjunta dos ministros dos negócios estrangeiros dos EUA, Reino Unido, França, Alemanha e Itália na semana passada [15 de Março] para assinalar o décimo aniversário do conflito sírio começa com uma completa falsidade ao responsabilizar o Presidente Bashar al-Assad e «os seus apoiantes» pelos horríveis acontecimentos naquele país. Afirma que as cinco potências ocidentais «não irão abandonar» o povo sírio – até que a morte nos separe.

A realidade histórica é que a Síria tem sido um teatro das actividades da CIA desde a criação dessa agência, em 1947. Há toda uma história de projectos de «mudança de regime» patrocinados pela CIA na Síria, desde tentativas de golpe e planos para executar assassínios a ataques paramilitares e financiamento e treino militar de forças antigovernamentais.

Tudo começou com o golpe militar sem derramamento de sangue de 1949 contra o então presidente sírio Shukri al-Quwatli, que foi engendrado pela CIA. Segundo as memórias de Miles Copeland Jr., o chefe da estação da CIA em Damasco nessa altura – que mais tarde até escreveu um belo livro de alta qualidade literária sobre o assunto –, o golpe visava salvaguardar a Síria do partido comunista e de outros radicais!

No entanto, o coronel instalado pela CIA no poder, Adib Shaishakli, foi uma má escolha. Como disse Copeland, era um «simpático patife» que, «tanto quanto sei, nunca se tinha curvado perante um ídolo. No entanto, tinha cometido sacrilégio, blasfémia, assassínio, adultério e roubo» para ganhar o apoio americano. Ele durou quatro anos, até ser derrubado pelo Partido Ba'ath e por oficiais militares. Em 1955, a CIA achou que a Síria estava madura para outro golpe militar. Em Abril de 1956, foi implementado um plano conjunto CIA-SIS (Serviço Secreto de Informações Britânico) para mobilizar oficiais militares sírios de direita. Mas então o fiasco do Suez interrompeu o projecto.

A CIA reactivou o projecto e planeou um segundo golpe em 1957 sob o nome de código Operação Wappen – mais uma vez, para salvar a Síria do comunismo – e até gastou 3 milhões de dólares para subornar oficiais militares sírios. Tim Weiner, no seu magistral livro de 2008 História da CIA: um legado de cinzas [Difel, 2008], escreve:

«O presidente (Dwight Eisenhower) disse que queria promover a ideia de uma jihad islâmica contra o comunismo ateu. “Devemos fazer todo o possível para salientar o aspecto da ‘guerra santa’”, disse ele numa reunião na Casa Branca em 1957... (O Secretário de Estado) Foster Dulles propôs um “destacamento secreto”, sob cujos auspícios a CIA entregaria armas, dinheiro e informações americanos ao Rei Saud da Arábia Saudita, ao Rei Hussein da Jordânia, ao Presidente Camille Chamoun do Líbano e ao Presidente Nuri Said do Iraque».

«Estes quatro rafeiros deveriam ser a nossa defesa contra o comunismo e os extremos do nacionalismo árabe no Médio Oriente... Se as armas não podiam comprar lealdade no Médio Oriente, o todo-poderoso dólar continuava a ser a arma secreta da CIA. Dinheiro para a guerra política e jogos de poder era sempre bem-vindo. Podia ajudar um poder imperial americano em terras árabes e asiáticas.»

Mas aconteceu que alguns desses oficiais de «direita», em vez disso, entregaram o dinheiro do suborno e revelaram a trama da CIA aos serviços secretos sírios. Após o que, três oficiais da CIA foram expulsos da embaixada americana em Damasco, forçando Washington a retirar o seu embaixador em Damasco. Com o ovo na cara, Washington rapidamente rotulou a Síria como um «satélite soviético», enviou uma frota para o Mediterrâneo e incitou a Turquia a acumular tropas na fronteira síria. Dulles chegou mesmo a encarar um ataque militar ao abrigo da chamada «Doutrina Eisenhower» como retaliação contra as «provocações» da Síria. Diga-se de passagem que o MI6 britânico também estava a trabalhar com a CIA na tentativa de golpe falhada; os pormenores vieram a lume acidentalmente em 2003 entre os documentos do ministro da Defesa britânico Duncan Sandys muitos anos após a sua morte.

Agora, retomando a história actual, basta dizer que, segundo o WikiLeaks, desde 2006 os EUA tinham financiado dissidentes sírios sediados em Londres e a unidade da CIA responsável por operações secretas foi destacada para a Síria para mobilizar grupos rebeldes e avaliar potenciais rotas de abastecimento. Sabe-se que os EUA treinaram pelo menos 10 000 combatentes rebeldes desde 2012, com um custo anual de mil milhões de dólares. O Presidente Barack Obama alegadamente admitiu a um grupo de senadores a operação para introduzir na Síria estes combatentes rebeldes formados pela CIA.

O conhecido jornalista de investigação e escritor político americano Seymour Hersh escreveu, com base nos contributos de agentes dos serviços secretos, que a CIA já estava a transferir armas da sua estação de Benghazi (Líbia) para a Síria por volta dessa altura. Há que não esquecer que Obama foi o primeiro líder mundial a apelar abertamente ao afastamento de Assad. Isso foi em Agosto de 2011. O então chefe da CIA David Petraeus fez duas visitas não anunciadas à Turquia (em Março e Setembro de 2012) para persuadir Erdogan a intervir como porta-estandarte do projecto americano de mudança de regime na Síria (sob a rubrica de «luta anti-terrorista»).

De facto, os principais aliados dos EUA no Golfo Pérsico - Arábia Saudita, Catar e EAU –seguiram a deixa de Obama no sentido de soltarem os cordões à bolsa para recrutar, financiar e equipar milhares de combatentes jihadistas a serem destacados para a Síria. Do mesmo modo, logo desde as fases iniciais do conflito na Síria, as principais agências de informação ocidentais prestaram apoio político, militar e logístico à oposição síria e aos grupos rebeldes seus associados na Síria.

Curiosamente, a intervenção russa na Síria em Setembro de 2015 foi em resposta a uma derrota iminente das forças governamentais sírias às mãos dos combatentes jihadistas apoiados pelos aliados regionais dos EUA. A Arábia Saudita saiu de cena apenas em 2017, depois de a maré da guerra ter virado, graças à intervenção russa.

A declaração conjunta emitida na semana passada [15 de Março] pelos EUA e os seus aliados da NATO pertence ao mundo da ficção. Na realidade, estes países da NATO (incluindo a Turquia) e os aliados dos EUA no Golfo têm as mãos manchadas de sangue sírio. Veja-se a destruição colossal que os EUA causaram: na estimativa do Banco Mundial, a Síria perdeu um total acumulado de 226 mil milhões de dólares do produto interno bruto devido à guerra apenas entre 2011 e 2016.

O conflito sírio é um dos conflitos mais trágicos e destrutivos do nosso tempo. Centenas de milhares de sírios morreram, metade de uma nação foi deslocada e milhões foram forçados à pobreza desesperada e à fome. Na estimativa do ACNUR, após dez anos de conflito, metade da população síria foi forçada a fugir de casa, 70% vivem na pobreza, 6,7 milhões de sírios foram deslocados internamente, mais de 13 milhões de pessoas necessitam de ajuda humanitária e protecção, 12,4 milhões de pessoas sofrem de falta de alimentos (ou seja, 60% de toda a população), 5,9 milhões de pessoas estão a sofrer uma emergência habitacional e quase nove em cada 10 sírios vivem abaixo do limiar da pobreza.

E, é bom lembrar, a Síria tinha um dos mais altos níveis de formação social em todo o Médio Oriente muçulmano. Era um país de rendimento médio até os EUA decidirem desestabilizar a Síria. Desde finais da década de 1940, os sucessivos projectos americanos de mudança de regime foram impulsionados por considerações geopolíticas. A agenda é inconfundível: os EUA destruíram sistematicamente o coração, alma e mente do «Arabismo» – Iraque, Síria e Egipto – com vista a perpetuar o domínio ocidental sobre o Médio Oriente.

O ex-Presidente Donald Trump tencionava retirar as tropas americanas da Síria e pôr fim à guerra. Tentou duas vezes, mas os comandantes do Pentágono sabotaram os seus planos. O que Joe Biden se propõe fazer só se pode adivinhar. Biden não parece estar com pressa de retirar as tropas americanas.

O aspecto mais perturbador é que os EUA estão metodicamente a facilitar uma balcanização da Síria, ajudando os grupos curdos consigo alinhados a incrustar um enclave semiautónomo no Nordeste do país. De facto, a população árabe do Nordeste da Síria sente desagrado por estar sob a governação dos curdos, o que poderá acabar por transformar-se numa nova fonte de recrutamento para o Estado Islâmico. Entretanto, a Turquia aproveitou o eixo EUA-Curdo como álibi para ocupar vastos territórios no Norte da Síria.

A parte triste da declaração conjunta dos EUA e dos seus aliados europeus é não só que está a reescrever a história e a espalhar falsidades, mas também que transmite uma sensação de desespero de que não há esperança de ver luz ao fundo do túnel no conflito sírio num futuro concebível.

A política dos EUA na Síria é opaca. Tem oscilado entre o objectivo de evitar um ressurgimento do Estado Islâmico, confrontar o Irão, fazer retroceder a Rússia, prestar ajuda humanitária, e mesmo proteger Israel, enquanto o cerne da questão é que as sucessivas administrações dos EUA não conseguiram articular uma estratégia e uma fundamentação claras para a presença militar dos EUA na Síria.


O Dr. M. K. Bhadrakumar foi diplomata de carreira. Cerca de metade das três décadas da sua carreira diplomática foi dedicada a missões nos territórios da antiga União Soviética, no Paquistão, Irão e Afeganistão. Outras missões no estrangeiro incluíram a Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha e Turquia. Publica o blog Indian Punchline, onde escreve principalmente sobre a política externa indiana e os assuntos do Médio Oriente, Eurásia, Ásia Central, Ásia do Sul e Ásia-Pacífico.


Este artigo de opinião foi publicado no blog Indian Punchline em 20 de Março de 2021.


Os artigos assinados publicados nesta secção, ainda que obrigatoriamente alinhados com os princípios e objectivos do MPPM, não exprimem necessariamente as posições oficiais do Movimento sobre as matérias abordadas, responsabilizando apenas os respectivos autores.

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