Colóquio «A Palestina na Primeira Pessoa» - Testemunho de jornalistas

O MPPM promoveu, em 14 de Abril de 2009, no Teatro Cinearte / A Barraca, a realização de um Colóquio subordinado ao tema "A Palestina na Primeira Pessoa", para o qual convidou três jornalistas para darem o seu testemunho pessoal sobre a situação na Palestina. Porque, como justificou Carlos Almeida na sua nota introdutória, "a agenda mediática portuguesa atinge o paroxismo nos períodos de violência máxima mas é de um silêncio esquálido no resto do tempo". "Quem noticiou hoje", pergunta-se "a situação das famílias palestinas que receberam ordem do exército de Israel para abandonar as suas casas em Jerusalém Oriental; ou a morte de duas mulheres, feridas no ataque a Gaza, que morreram porque Israel não permitiu que fossem evacuadas para hospitais fora da Faixa onde poderiam ser tratadas; ou a vandalização do cemitério de Hebron por colonos israelitas?". Mas não é possível compreender o que se passa na região sem conhecer o dia-a-dia dos palestinos.
Esta nota viria a ser reforçada por José Manuel Rosendo, jornalista da Antena 1, ao confessar a sua dificuldade em transmitir o que considera ser a verdadeira violência: "O conflito, o atentado, a explosão é o que chega às notícias, geralmente em plano fechado; mas a verdadeira violência está no dia-a-dia do povo palestino e isso é difícil de fazer chegar às pessoas. O que se passa com o Muro, serpenteando entre as aldeias palestinas, é difícil de entender por qualquer mente civilizada". Referiu, por exemplo, a forma ostensiva como os horários de abertura do Muro são desfasados dos da escola das crianças, obrigando-as a longas esperas nos percursos de ida e vinda da escola. 
Maria do Céu Guerra, que moderou o colóquio, referiu a sua experiência de uma anterior visita à Palestina, no aniversário da primeira Intifada, onde já era patente a violência física e psicológica exercida sobre os palestinos, com o acesso limitado aos hospitais com medo de serem controlados e perderem o trabalho, com os controlos intermináveis nos check-points. "Vi acabar o apartheid, vi acabar a guerra do Vietname, vi acabar a guerra de África, mas não vejo o fim da guerra israelo-árabe, melhor, da agressão de Israel contra os árabes" - desabafou, para deixar uma questão: "Continua a ser legítimo que Israel ainda esteja nas Nações unidas, com tanto desrespeito pelas suas deliberações, com tanta violação do direito internacional?"   
Patrícia Fonseca, jornalista da revista Visão, refere a preocupação do jornalista em manter a sua objectividade, transmitindo ao leitor os factos, tal como os presenciou. "Mas", pergunta,"como é possível ficar indiferente perante situações como a ocorrida na minha última ida a Ramalah, em que estive junto do cadáver de um rapaz de 15 anos que acabava de ser morto apenas porque tentava defender as oliveiras centenárias da sua família que estavam a ser destruídas pelos israelitas para expandirem um colonato?". Sem comentar, mostrou um vídeo gravado em Janeiro, no primeiro dia em que os jornalistas foram autorizados a entrar em Gaza. Um palestino, na única sala que resta do que era a casa da família, relata o ataque do exército israelita, mostra os buracos de balas nas paredes, indica o local onde o pai foi morto à queima-roupa quando abriu a porta -e aos sobreviventes, expulsos do que restava da casa, só passados dias foi autorizado que recolhessem o corpo do pai.Patrícia Fonseca, José Manuel Rosendo e Maria do Céu Guerra
Lumena Raposo, do Diário de Notícias, lamenta não ter tido a "felicidade", como jornalista, de poder cobrir a invasão de Gaza no local. Mas relata episódios que testemunhou em anteriores idas à Palestina. Como a visita a uma aldeia que tinha sido atacada e estava cercada, há 48 horas, pelo exército de Israel que procurava um suspeito de fazer parte do comando responsável pela morte do Ministro do Turismo. Depois da retirada das tropas, quando os jornalistas foram autorizados a entrar, depararam-se com cenas de morte e destruição. Os homens, humilhados pela sua impotência, não falavam - só as crianças relataram os acontecimentos. Mais tarde, dois jovens palestinos chegam à fala com os jornalistas que se apercebem que um deles era o suposto elemento do comando que os israelitas procuravam - tinha estado todo o tempo numa outra aldeia, do outro lado da estrada! Outro episódio que impressiona a jornalista é o da destruição de casas. Relata como a família, depois de obter um empréstimo, pede autorização para construção à autoridade ocupante. A autorização raramente vem, mas havia uma tradição de que, depois da casa ocupada, a situação era regularizada com uma multa. Mas agora, depois da casa construída, com a ajuda dos amigos, depois de mobilada e habitada, chega a ordem de abandono e a casa é destruída com tudo o que não tenha havido tempo de retirar.
O que mais chocou José Manuel Rosendo, naquilo que considera difícil classificar como uma guerra, tal a desproporção de forças em confronto, foi "a satisfação, a festa que alguns israelitas fizeram no momento em que assistiam aos bombardeamentos". Embora compreendendo que as populações sentissem a necessidade de que alguma coisa fosse feita para parar o lançamento de rockets, "o que já não entendo", confessa, "é a forma de expressar a satisfação - e faziam-no deliberadamente porque sabiam que estavam ali jornalistas - havia festa, havia palmas, havia bandeiras, havia cartazes, enquanto os palestinianos estavam a morrer ali à frente, a dois ou três quilómetros". Considera que, a despeito da acusação de que o Hamas teria aproveitado o período de tréguas para se reorganizar militarmente, "se alguém preparou, realmente, bem esta guerra foi o estado de Israel. Estava tudo preparado ao pormenor. Inclusivamente o esquema para entreter os jornalistas enquanto esperavam para poder entrar em Gaza. Havia centros de imprensa, havia oficiais de ligação, havia conferências de imprensa, havia listas enormes de contactos de pessoas que falavam português, francês, italiano, russo, alemão, o que possam imaginar". José Manuel Rosendo considera muito difícil encontrar uma solução sem a intervenção da comunidade internacional, face ao ponto a que chegaram as coisas. "Isto significa que o estado de Israel conseguiu aplicar no terreno aquela que era a sua política de origem". Recomenda a leitura do livro "Conversas Íntimas com Ariel Sharon" escrito por um jornalista que acompanhou o seu percurso político durante 40 ou 50 anos. "Está lá tudo - a política toda do estado de Israel".
No entanto, intercalado nos relatos de violência e dor, há lugar a episódios de profunda humanidade, como os relatados por Patrícia Fonseca. Quando estava a entrevistar umas pessoas num dos campos cujas culturas tinham sido todas destruídas, vê chegar uma senhora que lhe oferece um cesto de morangos, provavelmente não tendo mais nada, provavelmente passando fome, mas tornando impossível recusar a oferta. Ou aquele miúdo de uns 8 anos que lhe vem oferecer um café no caminho para Zeitun. Ou ainda a expressão de felicidade das três mulheres a olhar para os seus bebés recém-nascidos, esquecendo já que tinham tido os trabalhos de parto, sem assistência, debaixo de bombardeamento. Tudo isto leva Patrícia a reconhecer que o povo palestino, "mesmo nos momentos mais terríveis, tem uma dignidade que só vi no povo de Timor". José Manuel Rosendo, por sua vez, dá um testemunho de como, mesmo em cenário de guerra, há espaço para a ironia. Um jovem mostra-lhe a mensagem que circulava, por telemóvel, no dia 1 de Janeiro "Olha o céu pela janela / Os zanana cantam para ti / Os F16 atiram-te presentes / Israel deseja-te um bom Ano Novo". (Zanana é o nome que os palestinos dão aos aviões não tripulados utilizados por Israel). Lumena Raposo recorda a primeira missa em Belém, depois de a cidade ter sido libertada. Maria do Céu Guerra relata o episódio do jovem que lhe serve de guia no regresso de uma visita ao Santo Sepulcro e que a faz passar em frente a uma casa onde está afixada a fotografia de um jovem palestino falecido. "Era meu irmão e ainda não tinha 33 anos...". E evidencia, no povo palestino, o que chama a ritualização do quotidiano: "Numa casa, no meio da guerra, na única sala, onde há colchões encostados às paredes, e fotografias dos filhos mortos, ninguém fala enquanto não estão todos sentados e não são servidos refrescos. Só depois dizemos ao que vamos..."
O debate que se seguiu incidiu sobre a Palestina, mas não só. Falou-se também muito do papel do jornalista e dos meios de comunicação.
Lumena Raposo e Carlos Almeida- Há objectividade jornalística, ou a objectividade é uma hipocrisia?
Patrícia Fonseca prefere chamar-lhe honestidade. O jornalista deve passar factos, não interpretações, a menos que esteja a escrever um artigo de opinião. Isto não significa que, em cada peça, haja que contar sempre a história vista dos dois lados: "Se estou a fazer um artigo sobre o ataque a Gaza, a reportagem é toda centrada em Gaza". Para José Manuel Rosendo, o jornalismo é pura subjectividade e uma das suas riquezas é, precisamente, a de diferentes pessoas apresentarem diferentes visões, consoante o seu ponto de leitura. Lumena Raposo explica como o jornalista pode encontrar formas de transmitir o que não vê: "Num dos textos que uma vez escrevi de Ramalah dei-me ao trabalho de contar as vezes que uma ambulância chegou e partiu. Não sei se levava feridos graves ou mortos, mas eu não conseguia ver o que se estava a passar e era a forma de transmitir ao leitor o que estava a acontecer".
- É possível o jornalista libertar-se das baias que lhe queiram impor? Como seleccionam as fontes? Há pressão dos editores para seleccionar os temas a tratar?
José Manuel Rosendo cita o conselho de Robert Fisk aos jornalistas mais jovens: "Quando viajarem, não levem e Internet, levem um livro de História" e refere que, no seu caso pessoal, prefere partir com alguma base de informação, mas sem grandes planos. "Gosto mais de ver o que se passa à minha volta, aquilo que os meus camaradas nas agências não podem contar". Não sente pressão dos editores, mas alguns editores preferem não arriscar e dificilmente "compram" temas que não tenham já sido cobertos por outros órgãos de comunicação. Para Patrícia Fonseca, o trabalho de jornalista é quase uma forma de militância. Com as redacções reduzidas, nenhum jornalista pode especializar-se, por exemplo, no Médio Oriente. A sua formação é feita nos seus tempos livres. Depois, é preciso convencer o editor de que o tema interessa, combater a ideia de que "já ninguém tem paciência para ouvir falar do Médio Oriente". E lança um apelo: "Sejam também militantes. Muita gente escreve para os jornais a criticar, mas quando virem um artigo de que gostem, escrevam a dizer ‘Muito bem!', porque os editores gostam de receber cartas, de perceber que há gente que nos lê - e comprem jornais, porque o trabalho dos jornalistas tem que ser pago!". Apelo reforçado por Lumena Raposo: "O ‘outro lado' é muito activo, não tem pejo em insultar e em mentir".
Carlos Almeida invoca o livro "The Ethic Cleansing of Palestine" (A Limpeza Étnica da Palestina), onde Ilan Pappe descreve a guerra de 1948, para concluir que as tácticas usadas hoje em dia para tornar o quotidiano das pessoas absolutamente impossível é uma marca que vem desde os primeiros dias. "É fácil fazer chegar às pessoas a violência da guerra, mas é difícil fazer perceber o drama que é a destruição de um campo de cultura, a destruição de um campo de oliveiras, a destruição de uma casa, fazer perceber como isto é dramático e como torna a vida impossível. E o objectivo é, precisamente, tornar a vida impossível para obrigar as pessoas a desistir, a quebrar, a ir embora, a desaparecer. Esta informação é das coisas mais necessárias, porque dá a verdadeira dimensão do que se passa ali todos os dias".
Patrícia Fonseca faz notar a existência em Israel de um milhão de novos eleitores, oriundos do Leste, muito mais ortodoxos, que não querem estar informados, que são muito menos tolerantes, que têm o sonho do Grande Israel e apoiam as posições mais radicais Mas há, também, uma comunidade com muita coragem, pessoas como o rabino que dirige a organização do "Rabinos pela Paz", que todas as semanas enfrenta os bulldozers para impedir a destruição de casas palestinas. Lumena Raposo reforça esta nota sobre os "vários Israeis", referindo a existência de grupos pacifistas e de defensores dos direitos humanos que, quando se decidem a agir, têm muita força. Recorda, a propósito, o papel do grupo das "Quatro Mães", quatro mulheres que tinham perdido os filhos na guerra do Líbano e que agitaram a sociedade israelita precipitando a retirada do Líbano. Ou, nos dias de hoje, as mulheres que vão para os check-points controlar a acção dos soldados e fazer relatórios sobre o que vêem.
Maria do Céu Guerra terminou com um apelo para que façamos um esforço para compreender este povo, porque, como lhe tinha confessado um palestino "não sabemos se somos bons, se somos maus - ainda não nos deram tempo para pensar nisso".
Print Friendly, PDF & Email
Share