«Chile, um campo de testes para as armas israelitas», por Ramona Wadi
Os governos chilenos, tanto de direita como de esquerda, não renunciaram à herança militar e judicial da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Israel contribui para a sua luta contra as populações mapuche indígenas, proporcionando-lhes armas e treino. A criminalização pelo Chile da resistência mapuche pode ser comparada à repressão por Israel da resistência palestina.
Em todo o país, o Chile uniu-se nas manifestações contra o presidente de direita Sebastian Piñera e o seu compromisso com o programa neoliberal introduzido pelo falecido ditador Augusto Pinochet. Os manifestantes pediram a sua demissão e exigiram que seja elaborada uma nova constituição para substituir a herança da ditadura.
O estado de emergência e o recolher obrigatório impostos por Piñera em todo o Chile suscitaram comparações com a época da ditadura no Chile, visto que os militares se lançaram numa escalada de violência contra a população civil, em que se incluem assassínios, espancamentos e tortura sexual. Esta repressão em todo o país chamou a atenção pelo que recorda do passado. A militarização e criminalização da resistência no Chile têm origem nas leis antiterroristas promulgadas por Pinochet e utilizadas pelos governos que se sucederam desde a transição para a democracia contra a população mapuche indígena (1).
Tal como aconteceu durante a época da ditadura de Pinochet, Israel apoia as violações dos direitos humanos pelo governo actual ao vender tecnologia militar e de vigilância ao governo chileno. Desde a época da ditadura, a Central Intelligence Agency (CIA ) previu que o Chile continuaria a comprar armas a Israel com «pouco risco de irritar os Estados árabes, desde que mantenha discretas as suas relações com Tel Aviv e evite apoiar publicamente as políticas israelitas».
Em busca de novos parceiros
Não foi difícil ao Chile fazê-lo, nem durante a época da ditadura nem depois. Pinochet manteve relações com Israel e com os Estados árabes, evitando «uma posição clara sobre questões políticas controversas do Médio Oriente». Da mesma forma, os governos posteriores à ditadura mantiveram uma atitude ambígua, facilitada pelo apoio da comunidade internacional ao compromisso dos dois Estados.
A partir de 1973, depois da guerra israelo-árabe, os países africanos começaram a romper as relações diplomáticas com Israel. Isso obrigou o Estado de implantação colonial a procurar outros países para estabelecer relações diplomáticas, bem como possíveis mercados para a sua indústria de armamento para compensar a perda da colaboração militar com os países africanos. Como os EUA se tinham implantado fortemente na América Latina devido ao seu apoio às ditaduras militares e às operações em toda a região para eliminar qualquer influência socialista ou comunista, o Chile, que reconheceu Israel em 1949, era um objectivo primordial para o governo israelita. Com o aumento da preocupação da comunidade internacional com as violações dos direitos humanos no Chile, os EUA foram obrigados a a responder impondo um embargo sobre as armas em 1976, apesar de anteriormente terem financiado Pinochet para cometer esses mesmos crimes. Embora seja possível que a CIA tenha contornado a decisão do Congresso dos EUA, Israel estava numa posição privilegiada para intervir e preencher a lacuna, convertendo o Chile num dos seus principais compradores de armas na região.
Um documento desclassificado da CIA revela importantes pormenores sobre as compras militares do Chile a Israel. Desde 1975 até 1988, Israel vendeu sistemas de radar, mísseis ar-ar, equipamentos navais, sistemas aeronáuticos e antimísseis à ditadura chilena. Uma das razões pelas quais Pinochet escolheu Israel, além do seu armamento sofisticado e da admiração pelo exército israelita, foi o facto de que «Tel Aviv não impõe condições políticas para as suas transferências». Isto era importante para Pinochet, do mesmo modo que a postura dúplice de Israel, que, ao mesmo tempo que proferia declarações públicas de apoio ao retorno à democracia no Chile, fornecia armas à ditadura para serem usadas no país e na região, num momento em que estava no seu apogeu a Operação Condor, um plano de escala regional implementado em 1975 pelas ditaduras de direita latino-americanas para exterminar os opositores de esquerda. Além de vender armas ao Chile, na década de 1980 Israel também ofereceu aos militares de Pinochet a oportunidade de visitar as suas indústrias de defesa e proporcionou exercícios de treino a pilotos e oficiais do exército chilenos.
Leis comparáveis
Os governos chilenos da época posterior à ditadura mantiveram a constituição de Pinochet. As leis antiterroristas de 1984, usadas por Pinochet para prolongar a detenção sem ter de apresentar acusação, foram aplicadas desde então quase exclusivamente à população mapuche pelos governos chilenos de centro-esquerda e de direita. Esta legislação é semelhante à detenção administrativa que Israel aplica aos palestinos e que permite encarcerá-los sem acusação nem julgamento e renovar periodicamente a ordem de detenção. A criminalização pelo Chile da resistência mapuche contra a exploração neoliberal tem paralelismos com a opressão da resistência palestina por Israel. Ambos os povos indígenas enfrentam lutas comuns e opressores semelhantes. A vigilância, uma táctica que tem raízes profundas na colonização da Palestina por Israel, é uma medida que os governos chilenos têm aplicado sistematicamente contra os mapuches. Os governos chilenos utilizam tecnologia de vigilância israelita na região de Araucanía — a militarização da região é um resultado directo da aplicação da legislação antiterrorista à população mapuche.
A Elbit (2), a IAI (3) e a Rafael (4) contam-se entre os principais fornecedores do governo chileno. A Elbit e a IAI são amplamente utilizadas por Israel contra a população palestina. A tecnologia militar de Israel — desde sistemas de vigilância, manutenção de sistemas informáticos, munições de fósforo branco e tecnologia de demolição até à tecnologia para aviões de combate usados nos bombardeamentos de Gaza por Israel — é amplamente solicitada na América Latina, supostamente para o combate ao tráfico de drogas e a vigilância de fronteiras. No entanto, o que os governos da região procuram é controlar e reprimir principalmente as populações indígenas.
Em 2018, os exércitos israelita e chileno assinaram novas iniciativas de cooperação em matéria de formação e treino militar, comando e métodos de treino. O acordo foi assinado no Chile pelo major-general israelita Yaacov Barak e pelo general chileno Ricardo Martínez. Durante a visita, Barak visitou a Brigada de Operações Especiais de Lautaro. Piñera nomeou Chefe de Defesa Nacional o ex-comandante da Brigada Lautaro, Javier Iturriaga, quando o governo impôs o estado de emergência para combater os protestos à escala nacional no Chile.
Armas «testadas no terreno»
Israel comercializa as suas armas e tecnologia como produtos testados no terreno. Os palestinos de Gaza são o campo de experimentação humana em que é testada a tecnologia militar, o que torna qualquer governo que compre armas a Israel cúmplice da agressão colonial contra os palestinos. No Chile, esta agressão adopta um programa ainda mais sinistro. A compra de tecnologia militar israelita pelo governo chileno para perseguir a população mapuche espelha a repressão da luta anticolonial palestina por Israel.
Embora os laços actuais entre Israel e o Chile já não sejam ocultados dos olhares públicos, Israel continua a manter classificadas as relações entre os dois países durante o período da ditadura. Enquanto os Estados Unidos desclassificaram muitos documentos que revelam o seu papel no apoio à ditadura de Pinochet, Israel mantém classificadas mais de 19 000 páginas de documentos, apesar de eles poderem conter informações sobre parentes judeus de cidadãos israelitas que foram desaparecidos pela ditadura de Pinochet.
Recusa de abrir os arquivos
As forças armadas do Chile mantêm um pacto de silêncio que torna difícil obter informações e mais ainda fazer justiça aos milhares de pessoas torturadas, mortas e desaparecidas durante a ditadura. Em alguns casos os documentos desclassificados ajudam a colmatar a falta de informações. A recusa de Israel de abrir os seus arquivos relacionados com a ditadura de Pinochet prejudica a obtenção de justiça por cidadãos seus, dois dos quais apresentaram uma acção judicial em 2016 para que sejam publicados documentos que revelariam a extensão da colaboração de Israel com Pinochet, e que provavelmente revelariam também informações sobre duas vítimas executadas e desaparecidas, Ernesto Traubman e David Silberman. O Chile manteve relações estreitas com a força aérea israelita na época da ditadura, o que levanta questões sobre a participação de Israel na prática da ditadura que consistia em fazer desaparecer no mar, atirados de aviões, os detidos executados. Além disso, um grupo de elite de agentes da Direção Nacional de Informações do Chile (DINA) foi treinado em Israel pelo Mossad.
Para além de procurar informações sobre o assassínio e o desaparecimento dos seus parentes, Lily Traubman e Daniel Silberman insistiram que o seu objectivo último é revelar a extensão da implicação de Israel na ditadura de Pinochet: «As vendas de armas deveriam ser reguladas por lei e deveria haver critérios claros estabelecendo a proibição de vendas a países ou regimes ditatoriais que violam frequentemente os direitos humanos.»
A existência e a violência do colonialismo israelita fizeram de Gaza uma zona permanente de testes de armamento, dando a Israel uma vantagem ao vender a sua tecnologia a governos que também pretendem reprimir os seus cidadãos. «Testado no terreno» é o eufemismo usado pelo Ministério da Defesa de Israel: suprema forma de desumanização dos civis palestinos. No Chile, a situação da população mapuche é semelhante; de facto, é possível estabelecer comparações entre a luta pela libertação contra a exploração, a apropriação e a violência coloniais e neoliberais. Tanto o povo mapuche como o palestino sofreram uma limpeza étnica das suas terras pelos colonizadores, e as relações militares entre o Chile e Israel servem para reforçar a militarização. Entretanto, a normalização do colonialismo e do neoliberalismo ao nível internacional garante que as violações dos direitos humanos perpetradas contra ambas as populações indígenas permaneçam impunes.
Na realidade, possivelmente é a determinação dos governos chilenos — sem excepções, quer de centro-esquerda quer de direita — de militarizar a região da Araucanía perseguindo o povo mapuche que faz de Israel um parceiro sempre válido para o Chile. Durante a sua campanha eleitoral, Piñera prometeu alterar as leis antiterroristas para facilitar a perseguição aos mapuches. No entanto, como os protestos no Chile não dão sinais de amainar até que a constituição de Pinochet seja revogada, é possível que Israel venha a encontrar mais oportunidades lucrativas no Chile em detrimento de toda a população.
Ramona Wadi é jornalista
Notas
(1) Os mapuche são um dos oito povos autóctones que vivem no Chile. Como outros povos autóctones da região, tentam preservar a sua relação com a terra («Mapu-che» = «povo da terra») contra os grandes proprietários de terras, as grandes empresas, a construção de uma barragem hidro-eléctrica no seu território, as empresas florestais e industriais, etc. A sua resistência é qualificada como «terrorista» pelos diversos governos chilenos e severamente reprimida.
(2) Empresa israelita activa em várias tecnologias e aplicações: aviação, drones, helicópteros, sistemas de aviónica, sistemas terrestres e navais, armamentos e produtos de defesa, comunicações, informática, cibersistemas, sistemas de guerra electrónica, segurança das fronteiras, etc.
(3) Companhia israelita especializada na defesa aérea, aviação, tecnologia espacial, comunicações via satélite, tecnologias de navegação, navios de combate não tripulados, cibersegurança, etc.
(4) Companhia israelita especializada nos sistemas de defesa, nomeadamente antimísseis.
Este artigo foi originalmente publicado no site Orient XXI em Dezembro de 2019. Notas de Orient XXI. Tradução do MPPM.
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