Carta de Khalida Jarrar ao Festival de Literatura «Palestine Writes» escrita da prisão

Kahlida Jarrar escreveu, na prisão de Damon onde se encontra detida desde Outubro de 2019, esta carta que foi lida no Festival de Literatura Palestine Writes pelas suas filhas Suah e Yafa. Na carta, Khalida Jarrar fala de cultura, de literatura e de educação, da vida na prisão e de como a leitura fortalece a resistência, e agradece aos «escritores, académicos, intelectuais e artistas árabes que rejeitam a normalização com o sistema colonizador de Israel». Devido à pandemia, o festival, que deveria ter tido lugar em Nova Iorque entre 27 e 29 de Março de 2020, acabou por se realizar em conferências virtuais entre 2 e 6 de Dezembro passado.


Da prisão israelita de Damon, situada no cimo do Monte Carmel em Haifa, envio-vos as minhas saudações em meu nome e no das minhas 40 companheiras palestinas de luta pela liberdade que estão nas prisões israelitas. Saudamos respeitosamente todos os escritores, académicos, intelectuais e artistas que falam a verdade e apelam à liberdade e justiça para todos os povos e que defendem o direito dos povos à autodeterminação e se opõem à dominação racista colonial.

Nesta ocasião, permitam-me também enviar as nossas saudações e apoio a todos os escritores, académicos, intelectuais e artistas árabes que rejeitam a normalização com o sistema colonizador de Israel e que se recusaram a aceitar os acordos de normalização dos Emirados, do Barém e do Sudão com a entidade sionista. São posições como esta que representam os verdadeiros laços entre o nosso povo no mundo árabe e nos dão força, a nós prisioneiros, a partir do interior. Embora fisicamente sejamos mantidos presos atrás de cercas e grades, as nossas almas permanecem livres e elevam-se nos céus da Palestina e do mundo. Independentemente da severidade das práticas da ocupação israelita e das medidas punitivas impostas, a nossa voz livre continuará a falar em nome do nosso povo que sofreu terríveis catástrofes, deslocações, ocupação e prisões. Continuará também a dar a conhecer ao mundo a forte Vontade palestina que incansavelmente rejeitará e desafiará o colonialismo em todas as suas formas. Trabalhamos para estabelecer e consolidar os valores humanos e esforçamo-nos por obter a libertação social e económica que une os povos livres do mundo.

Saudamos os participantes neste painel de encerramento: camarada Angela Davis, colega e amiga Hanan Ashrawi, Richard Falk, a querida Susan Abulhawa e Bill V. Mullen.

Quanto à nossa contribuição para esta conferência, gostaríamos de tentar trazer até vós as nossas experiências reais com literatura e cultura enquanto estamos nas prisões israelitas. O elemento mais importante a este respeito são os livros. Os livros constituem o fundamento da vida nas prisões. Preservam o equilíbrio psicológico e moral dos combatentes da liberdade que vêem as suas detenções como parte da resistência global contra a ocupação colonial da Palestina. Os livros também desempenham um papel na luta individual da Vontade de cada preso, entre ele e as autoridades das prisões. Por outras palavras, a luta torna-se um desafio para os presos palestinos à medida que os carcereiros procuram despojar-nos da nossa humanidade e manter-nos isolados do mundo exterior. O desafio para os prisioneiros é transformar a nossa detenção num estado de "revolução cultural" através da leitura, educação e discussões literárias.

Os presos políticos palestinos enfrentam muitos obstáculos no acesso aos livros. Por exemplo, por vezes os livros não chegam até nós, uma vez que são submetidos a mecanismos de controlo apertados e confiscados quando trazidos por um membro da família. Em teoria, cada presa é autorizada a receber dois livros por mês. No entanto, estes livros são sujeitos a "controlos de escrutínio" onde, na maioria das vezes, são rejeitados pela administração prisional sob o pretexto de serem livros de incitamento. A privação do acesso das prisioneiras aos livros é utilizada como um castigo em que as detidas são proibidas de receber livros durante dois ou três meses, como aconteceu a mim própria em 2017.

A modesta biblioteca utilizada pelas prisioneiras é também sujeita a inspecções constantes para que os guardas prisionais confisquem qualquer livro que possa ter sido trazido sem o seu conhecimento. Isto leva os reclusos a inventar maneiras criativas de proteger os livros que possam ser apreendidos. Impedir que os livros sejam capturados pelas autoridades prisionais constitui uma das tarefas mais importantes para os presos.

Com isto em mente, as presas palestinas conseguiram fazer entrar furtivamente uma série de grandes livros, apesar das estritas restrições. Por exemplo, para além de alguns livros de filosofia e história, muitos dos livros de Ghassan Kanfani, Ibrahim Nasr-Allah e Suzan Abu-Alhawa estavam entre os que foram acedidos e estudados com sucesso pelas prisioneiras. O romance de Maxim Gorky «A Mãe» tornou-se um conforto para as mulheres prisioneiras que estão privadas do amor das suas mães. As obras de Domitila Chúngara, Abd-Arahman Munif, Al-Taher Wattar, Ahlam Mustaghanmi, Mahmoud Darwish, «As 40 Regras do Amor» de Elif Shafak, «Os Miseráveis» de Victor Hugo, Nawal El Saadawi, Sahar Khalifeh, Edward Said, Angela Davis e Albert Camus estão todos entre os livros mais apreciados que se esquivaram às inspecções e foram contrabandeados com sucesso.

No entanto, livros como «Notas das Masmorras» de Julius Fučík e «Cadernos da Prisão» de Antonio Gramsci nunca conseguiram escapar às medidas e restrições dos carcereiros. De facto, nenhum dos livros de Gramsci foi autorizado a entrar nas prisões devido ao que parece ser uma postura muito hostil das autoridades de ocupação em relação a Gramsci.

No lado mais positivo das nossas vidas, alguns livros escritos por prisioneiros dentro das prisões foram capazes de se infiltrar até nós, um dos quais fala das experiências de encarceramento e interrogatório nas prisões israelitas, intitulado «Não Estás Só». O que estou a tentar dizer, meus caros artistas e escritores, é que os vossos livros, que estão expostos em livrarias em todo o mundo, estão sujeitos a perseguição e confiscação pelas autoridades prisionais de ocupação israelita se tentarmos aceder a eles - os vossos livros aqui são presos como o nosso povo.

O acesso aos livros não é a única luta que os prisioneiros palestinos enfrentam nas prisões israelitas. Tentarei dar-vos uma visão furtiva das nossas vidas, tendo em mente, contudo, que a nossa Vontade exige que permaneçamos fortes como aço.

As autoridades prisionais israelitas impõem medidas opressivas numa base diária, demonstradas pela aplicação de políticas de isolamento através do confinamento solitário. Também nos privam de visitas da família, impedem a entrada de livros culturais e literários, e proíbem completamente os livros educativos. Proíbem também o canto em todas as suas formas. São proibidas as canções, tanto revolucionárias como normais.

Além disso, não nos é permitido comprar mais do que a única rádio a que temos acesso. A rádio é uma importante fonte de informação que nos liga ao mundo exterior através do acesso às notícias do mundo. Mas a rádio é mais do que isso para nós. É um instrumento que nos liga às nossas famílias e amigos na medida em que telefonam e nos enviam mensagens através dos vários programas de rádio palestinos.

As autoridades prisionais israelitas também não permitem qualquer tipo de reunião ou ajuntamento. Castigam continuamente as mulheres prisioneiras através da redução de artigos que podem ser comprados na "Cantina", a única "loja" disponível.

As presas são continuamente vigiadas através de câmaras de vigilância que rodeiam cada esquina da prisão, incluindo a praça Al-Forah. Esta praça é onde as prisioneiras são autorizadas todos os dias, durante cinco horas intermitentes, a sentir o sol fora dos seus quartos fechados com janelas de aço. Os nossos quartos são também sujeitos a inspecções rigorosas e provocatórias a todas as horas da noite ou do dia em busca de qualquer pedaço de papel com escrita. Podem imaginar como foi difícil para mim fazer chegar esta nota até vós.

Tudo o que foi dito acima e muito mais nos obriga a engendrar vários métodos para frustrar estas políticas. Alguns detalhes e itens podem parecer triviais fora da prisão, mas têm grande importância para nós mulheres prisioneiras no interior. Por exemplo, a caneta é importante, o papel é importante e os livros são considerados um tesouro. Todos eles constituem instrumentos utilizados como parte da nossa sobrevivência e luta contra a ocupação, e também para nos desenvolvermos.

Numa nota mais feliz, constatamos que muitos prisioneiros apesar das lutas mencionadas, especialmente aqueles com penas elevadas, enriqueceram a literatura com a publicação de romances, que espero venham a merecer a atenção de escritores árabes e internacionais. Além disso, o Movimento dos Prisioneiros publicou uma série de estudos e pesquisas que lançam luz sobre a realidade das condições nas prisões israelitas. Eu próprio realizei um estudo em 2016, quando estava presa, sobre “O estado das mulheres prisioneiras nas prisões israelitas”. O estudo centrou-se nos efeitos e violações contra mulheres e menores palestinas presas dentro das prisões. Em 2019, preparei outro trabalho sobre “Educação dentro das Prisões israelitas”, que foi publicado no livro de Ramzy Baroud sobre educação e mulheres prisioneiras intitulado «Estas Cadeias Serão Quebradas».

Infelizmente, ainda não vi a versão publicada do livro devido à minha actual nova detenção. No referido artigo, apresentei os desafios que a educação enfrenta na prisão, sendo um deles a persistência de Israel em impedir-nos de levar a cabo qualquer processo educativo na prisão. O seu objectivo é claramente o de isolar os prisioneiros, tanto homens como mulheres, e de nos quebrar, transformando-nos em indivíduos sem esperanças ou planos para um futuro decente. Os prisioneiros, por outro lado, dão o seu melhor para impedir as tentativas das autoridades prisionais através da inovação de métodos criativos para obter o direito à educação.

Estamos agora a procurar iniciar a primeira ronda de educação universitária para mulheres presas, como segunda fase da nossa luta para reivindicar o direito à educação. Isto marcará a primeira vez na história em que as mulheres palestinas presas, especialmente as que têm penas elevadas, podem obter um diploma universitário enquanto estão na prisão. Num futuro próximo, estará disponível uma actualização sobre este assunto, incluindo os desafios enfrentados.

Parte do programa educacional universitário baseia-se na integração de experiências educacionais palestinas, árabes e internacionais através da literatura da resistência. O programa incluirá também investigação e estudos científicos à nossa disposição na prisão, numa tentativa de aprofundar as capacidades analíticas das mulheres presas e de identificar as suas ambições para o seu futuro.

Toda a iniciativa visa inspirar e reforçar a autoconfiança das mulheres presas, encorajando-as a considerar a prisão um lugar para o desenvolvimento criativo, cultural e humano. Esperamos que a iniciativa reforce as convicções e capacidades das mulheres presas para criar uma mudança na sociedade, uma vez libertadas.

Esta iniciativa visa contribuir para a luta global de libertação contra o apartheid israelita e a desigualdade entre os sexos, dando às mulheres presas o poder de promoverem a sua educação e de entrarem na força de trabalho quando forem libertadas.

Quero notar que durante a minha preparação desta declaração, realizámos duas sessões educacionais para mulheres prisioneiras que se inscreveram para o ensino universitário. As duas sessões foram sobre as línguas inglesa e árabe, respectivamente.

O que me chamou a atenção foi que, durante a primeira sessão sobre a língua inglesa, solicitei que cada prisioneira preenchesse um pedido de inscrição fictício na universidade e que identificasse o campo de estudo que desejava prosseguir. Gostaria de partilhar algumas das candidaturas que recebi:

Shorouq: uma prisioneira de Jerusalém que foi condenada a 16 anos e que cumpriu seis desses anos até à data. Foi presa quando frequentava a Universidade de Belém numa licenciatura em Turismo. O sonho de Shorouq é tornar-se uma guia turística. Ela escolheu a sua especialização em turismo porque quer educar o mundo sobre lugares históricos na Palestina. Está particularmente interessada em fazer visitas guiadas em Jerusalém devido à contínua anexação, roubo, violações e distorção da paisagem imposta à cidade pela ocupação israelita.

Maysoun: uma prisioneira de Belém que foi condenada a 15 anos de prisão, tendo cumprido seis desses anos até à data. Foi presa quando frequentava a universidade numa licenciatura em literatura. Maysoun é uma leitora ávida, mesmo na prisão. Ela adora literatura. Ela retrata a literatura como um método para formar o nosso futuro. A literatura, na sua opinião, exige que o leitor pense e responda a muitas questões relativas a um tema específico levantado pelo romance ou pela obra literária que se tem em mãos. Ela acredita que isto conduz ao pensamento crítico e ao desenvolvimento cultural.

Ruba: Ruba é uma estudante de sociologia do 3º ano da Universidade de Birzeit. Foi detida há três meses e ainda se encontra presa. Ruba tem o desejo e a disponibilidade para continuar os seus estudos após a sua libertação. De acordo com ela, a razão para escolher a sociologia como tema de estudo é desenvolver os seus conhecimentos académicos e análise das estruturas sociais e de classe na sociedade, e os seus impactes nas mulheres.

Na minha tentativa de compreender os motivos por detrás das aspirações e sonhos destas mulheres, decidi discutir as questões de forma mais aprofundada com elas próprias. Achei que o denominador comum entre elas era a rebelião. Rebelião contra a opressão e restrições impostas. Uma rejeição definitiva das políticas de ocupação no impedimento da educação das mulheres presas. Uma força interior para desafiar o controlo utilizado contra as mulheres presas com o objectivo de as isolar e transformar em mulheres desesperadas que não têm sonhos nem planos para o futuro.

Outros motivos incluem a resistência contra o plano da ocupação para obliterar a identidade e a história palestinas. Estas mulheres também querem romper com as profissões estereotipadas e de género que a sociedade designa para as mulheres. É por isso que escolheram cursos tais como turismo, literatura, sociologia e teoria crítica.

Quanto à segunda sessão sobre a língua árabe, concentrámo-nos nas autobiografias e trabalhámos sobre os diferentes métodos de elaboração de autobiografias. As mulheres prisioneiras foram divididas em grupos que discutiram várias biografias, incluindo a da líder laboral e feminista boliviana Domitila Chúngara, «Deixem-me Falar!», que fala sobre as experiências e lutas dos mineiros na Bolívia.

Além disso, estudámos biografias e autobiografias de escritores árabes consagrados, como «Al-Ayyam» de Taha Hussein, e «Nasci Ali, Nasci Aqui» de Mourid Barghouti.

A sessão incluiu também a análise de textos literários como o do poeta palestino Mahmoud Darwish intitulado “Incerteza do Regresso”, que foi um discurso proferido por Darwish na Universidade de Birzeit numa celebração da libertação do Sul do Líbano em 2000.

As sessões de educação, apresentações e debates enriqueceram os conhecimentos das mulheres prisioneiras e encorajaram-nas a continuar a ler livros e romances. Estamos a transformar a prisão numa escola cultural onde os prisioneiros aprendem sobre outras experiências e onde derrotamos as tentativas da ocupação para nos isolar do resto do mundo.

Em conclusão, a nossa luta pela libertação dentro das prisões começa com a protecção da literatura de resistência. Estamos a transmitir as nossas vozes e histórias ao mesmo tempo que as escrevemos em circunstâncias muito difíceis. Quando somos apanhados, o preço que pagamos é por vezes pesado, especialmente quando o nosso castigo é o confinamento em solitária ou a proibição de visitas das famílias.

Um caso em questão é o preço pago pelo prisioneiro Waleed Daqa que foi colocado em prisão solitária por ter feito sair clandestinamente da prisão o seu romance para ser publicado. Isto constitui outro desafio que enfrentamos no quadro das "Duas Vontades" -- a Vontade dos combatentes da liberdade e a dos colonizadores, tal como expressa pela combatente da liberdade Domitila Chúngara em «Deixem-me Falar!»

Nós, as prisioneiras palestinas, dizemos também «deixem-nos falar... deixem-nos sonhar... deixem-nos ser libertadas!»

Obrigado por me terem escutado e por me terem dado a oportunidade de participar nesta conferência.

Khaleda Jarrar,

Prisioneira política, Prisão de Damon
17 de Outubro de 2020


Tradução para português de responsabilidade do MPPM a partir da tradução do árabe para inglês por Jamileh Abed

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