«Alexandria - O Fim de um Tempo», por Júlio de Magalhães

Júlio de Magalhães é Vice-Presidente do MPPM e investigador de assuntos árabes
 
A explosão de um carro armadilhado ou de um bombista-suicida na igreja copta de Al-Qiddissine (Os Santos), no distrito de Sidi Bisher, em Alexandria, quando os fiéis saíam, na madrugada de 1 de Janeiro de 2011, da missa de celebração do Ano Novo, provocou pelo menos 21 mortos e cerca de uma centena de feridos. Na confusão subsequente, muitos cristãos confrontaram a polícia (alguns polícias são cristãos) bem como grupos de muçulmanos da vizinhança, e atacaram a mesquita nova de Sidi Bisher situada em frente da igreja.
O presidente egípcio Hosni Mubarak condenou de imediato o ataque (que atribuiu a "mãos estrangeiras") e pediu (o que começa a tornar-se improvável, senão impossível) a união de todos os egípcios (cristãos e muçulmanos) na luta contra o terrorismo, dado o aumento da tensão verificada entre as duas comunidades nos últimos anos, especialmente depois da invasão anglo-americana do Iraque, do continuado impasse na resolução do conflito israelo-palestiniano e do presumível assassinato por envenenamento do presidente Yasser Arafat. A situação é particularmente delicada dado que, ao contrário do Iraque, onde os cristãos constituem hoje uma ínfima minoria, os cristãos do Egipto, quase exclusivamente coptas, oscilam (não existem actualmente, como é óbvio, estatísticas fiáveis) entre 10% a 15% da população, o que significa 8 a 10 milhões de pessoas.
Também o porta-voz da Universidade de Al-Azhar, a mais alta instância religiosa muçulmana sunita do mundo, Mohammed Raf'a al-Tahtawi, condenou o ataque, considerado contra a lei islâmica e que constituiu um atentado contra a unidade nacional egípcia.
O governador de Alexandria, Adel Labib acusou a Al-Qaïda de se encontrar por detrás deste mortífero atentado, conforme aquela organização já ameaçara, e que o ataque nada tem a ver com qualquer sectarismo entre a população do país.
Têm-se verificado vários incidentes nos últimos anos, o mais recente por causa da tentativa de construção de uma igreja no Cairo, no distrito de Gizeh, que provocou um morto e muitos feridos, mas o ataque da madrugada de 1 de Janeiro abre um gravíssimo precedente na convivência da população, numa cidade mítica como é Alexandria, sede de uma biblioteca que recorda a famosa Biblioteca mandada edificar por Ptolomeu I e que, durante séculos, foi a grande cidade cosmopolita do Mediterrâneo e o centro do saber mundial. Lawrence Durrell evoca-a (a cidade) no seu célebre Quarteto, obra que é um marco na história da literatura mundial, mas confere-lhe cores que já então (fim dos anos 50 do século passado) não correspondiam à realidade. E o futuro encarregou-se de demonstrar que a realidade não se adaptou à ficção. 
Os confrontos religiosos no Médio Oriente, para os quais Bento XVI chamou novamente a atenção na sua alocução de Ano Novo, estão a alastrar e agravar-se de forma inusitada. O Papa convocou uma reunião para Outubro, em Assis, onde espera reunir os mais altos dignitários de todas as confissões religiosas mundiais. 
Deve notar-se que a recriação da biblioteca de Alexandria, com o apoio da UNESCO, e que pretende constituir "uma janela do Egipto sobre o mundo e do mundo sobre o Egipto", segundo Mubarak, é mal vista pelos extremistas islâmicos, que a consideram um centro de importação e penetração do saber ocidental (infiel) e uma reminiscência da influência grega no Egipto (os Ptolomeus eram gregos, sucessores de Alexandre Magno). Muitos alunos e até professores da Universidade de Alexandria têm-se mostrado muito críticos relativamente à construção e ao funcionamento da Biblioteca.
Este atentado, na sequência dos incidentes verificados nos anos mais recentes, significa o fim de um tempo: por um lado, o ciclo de governação do presidente Mubarak, na esteira sinuosa dos consulados de Nasser e Sadat, chegou ao fim; por outro, a convivência pacífica que sempre foi, e ainda é, apanágio do povo egípcio, ameaça deteriorar-se irremediavelmente por influência do extremismo islâmico, alimentado por todos os erros e ambições ocidentais.
Como já escrevemos, o ataque ao Iraque, mais do que um crime, foi um erro (como diria Talleyrand), e abriu definitivamente a Caixa de Pandora que se compraz em derramar todos os seus males sobre o mundo.
Depois da Palestina, do Líbano, do Afeganistão, o Iraque revelou-se mortífero para o Ocidente. E ainda há quem pense no Irão (que não é verdadeiramente causa mas consequência). Destes confrontos, especialmente do último, restam milhões de mortos, feridos, desalojados, estropiados.
Serão um dia Bush e Blair julgados em tribunal pelos seus crimes contra a Humanidade? Duvido.
1 de Janeiro de 2011
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