Alemanha retira prémio a Caryl Churchill por apoiar Palestina
A dramaturga inglesa Caryl Churchill foi galardoada, em Abril passado, com o prémio European Drama Award 2022 como reconhecimento pelo trabalho de toda a sua vida. Mas, no início deste mês de Novembro, o júri retractou a sua decisão e cancelou o prémio deste ano, dizendo que tinha tido conhecimento de «informações anteriormente desconhecidas».
O prémio, no valor de 75.000 euros — o maior da Europa — é atribuído pela Schauspiel Stuttgart e patrocinado pelo Ministério da Ciência, Investigação e Artes do estado de Baden-Württemberg. Na sua declaração, o júri disse que Churchill tinha sido escolhida para o prémio «em reconhecimento do trabalho da sua vida» mas que, entretanto, tinha tomado conhecimento do apoio da autora ao movimento BDS — Boicote, Desinvestimento, Sanções. «A peça Sete Crianças Judias também pode ser considerada como sendo anti-semita. Portanto, para nosso grande pesar, o júri decidiu não atribuir o prémio este ano», diz-se no comunicado.
A ministra das artes do governo estadual, Petra Olschowski, suporta a decisão: «Na Alemanha, temos uma responsabilidade histórica especial. É por isso que nós, como país, tomamos uma posição clara e não negociável contra qualquer forma de anti-semitismo. Esta é mais uma razão pela qual um prémio financiado pelo Estado não pode ser atribuído nestas circunstâncias».
Caryl Churchill, de 84 anos, é uma das figuras mais influentes e significativos da dramaturgia contemporânea do Reino Unido. Ela escreveu mais de 30 peças, muitas das quais lidam com abuso de poder. Em resposta ao cancelamento do prémio, ela declarou: «Eu mantenho o meu apoio ao BDS e aos Palestinos».
Cancelamento do prémio merece condenação
Alguns dos principais nomes do teatro e do cinema britânicos criticaram o cancelamento do prémio atribuído a Caryl Churchill devido ao seu apoio aos direitos dos Palestinos. Numa carta publicada na passada quinta-feira, 17 de Novembro, dizem estar consternados com a decisão de rescindir o prémio: «Este ataque à liberdade de consciência é nada menos que o McCarthyismo moderno, e levanta questões urgentes sobre um padrão de intimidação e silenciamento», diz a carta.
E acrescenta: «Se as únicas formas de arte consideradas 'seguras' para as instituições são aquelas que nada têm a dizer aos despossuídos e oprimidos desta Terra e que são silenciosas face à repressão sancionada pelo Estado, então a arte e a cultura são esvaziadas de significado e valor.»
Entre os que assinaram a carta aberta, promovida por Artists for Palestine, encontram-se Harriet Walter, Stephen Daldry, Juliet Stevenson, Stephen Frears, Richard Eyre, Peter Kosminsky e Dominic Cooke.
No início deste ano, Priti Patel, então Ministra do Interior do governo de Boris Johnson, descreveu o movimento BDS como racista e anti-semita. «Considerar a comunidade judaica colectivamente responsável pelo que acontece no Médio Oriente pela minha definição é racista», disse ela aos Amigos Conservadores de Israel.
Alemanha silencia opiniões críticas de Israel
Em 10 de Setembro de 2019 foi anunciado que a escritora britânico-paquistanesa Kamila Shamsie recebera o Prémio Nelly Sachs atribuído pela cidade de Dortmund. Mas numa declaração publicada no dia 18, o painel de oito jurados anunciou que retirava o prémio à escritora por esta apoiar o movimento BDS.
Numa carta aberta intitulada «O direito ao boicote», publicada em 23 de Setembro de 2019 na London Review of Books, centenas de autores de renome condenaram a retirada do prémio a Kamila Shamsie. A carta é subscrita, entre outros, por Arundhati Roy, J.M. Coetzee, Noam Chomsky, Amit Chaudhuri, William Dalrymple, Yann Martel, Jeanette Winterson e Ben Okri, bem como pelos historiadores israelitas Avi Shlaim e Ilan Pappe.
Em Março de 2020, responsáveis públicos pressionaram a curadora do Festival trienal do Ruhr, em Bochum, para que retirasse o convite ao filósofo camaronês Achille Mbembe que deveria fazer o discurso inaugural do festival. Em Setembro de 2019, a cidade de Dortmund tinha revertido a sua decisão de atribuir a Kamila Shamsie o Prémio Nelly Sachs para a Literatura. Duas semanas depois, fora a vez de Aachen anular a sua decisão de atribuir o prémio de arte da cidade ao artista libano-americano Walid Raad. Na mesma altura, o centro cultural municipal Gasteig de Munique informou a intérprete israelo-alemã Nirit Sommerfeld de que o seu concerto seria anulado se ela «abordasse certos temas».
Estes quatro incidentes, implicando quatro cidades alemãs e quatro formas de expressão diferentes, tinham uma coisa em comum: em cada caso, o artista ou intelectual visado é um apoiante do movimento BDS. Isso levou, em Maio de 2020, 377 académicos e artistas de mais de 30 países a comprometerem-se a não participar em júris, comissões de prémios ou consultas para recrutamento académico sempre que existam «indicações convincentes de que as suas decisões podem estar sujeitas a interferências ideológicas ou políticas ou a critérios de tomada de decisão de natureza política».
Mais de uma centena de figuras públicas condenaram a decisão do Festival Open Source de Düsseldorf de retirar o convite ao rapper negro norte-americano Talib Kweli, em 2019.
Em 2018, 75 figuras públicas tinham condenado a decisão da Trienal do Ruhr de retirar o convite ao grupo musical Young Fathers, e como resultado, vários artistas e grupos cancelaram a sua participação no festival, obrigando o festival a convidar novamente os Young Fathers.
Numa conferência de imprensa em Berlim, em 10 de Dezembro de 2020, os directores de 32 das mais prestigiadas instituições culturais alemãs divulgaram uma declaração na qual se pronunciam contra a resolução do Bundestag sobre o anti-semitismo e alertam que «as acusações de anti-semitismo estão a ser mal utilizadas para afastar vozes importantes e para distorcer posições críticas».
Sintomático do clima que se vive no meio cultural alemão é que a conferência de imprensa foi planeada clandestinamente e culminou um ano de reuniões mensais realizadas em absoluto sigilo. Em causa estão, no entender dos participantes, a democracia alemã e a liberdade de expressão artística e académica.
Na origem do movimento está uma resolução aprovada pelo Parlamento alemão, em Maio de 2019, que designava a campanha de sanções a Israel BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções) como anti-semita. A resolução não vinculativa exorta todos os estados e municípios da Alemanha «a não apoiar financeiramente quaisquer projectos que apelem ao boicote de Israel ou apoiem activamente a campanha BDS».
«Sete Crianças Judias» representada em Portugal
A peça de Caryl Churchill «Sete Crianças Judias» foi representada n’A Barraca pelos alunos do 12º ano do Curso Profissional de Artes do Espectáculo do Liceu Passos Manuel, em 27 de Março de 2013, na sessão dedicada à comemoração do Dia Mundial do Teatro.
Este espectáculo tinha sido estreado no dia 1 de Junho de 2011, na sala de teatro do Liceu Passos Manuel, culminando o trabalho dos alunos da turma E do 10.º ano do curso de Artes do Espectáculo. Na assistência estava Maria do Céu Guerra que, perante a qualidade do trabalho desenvolvido, convidou os jovens actores a apresentar a sua peça na sala do Teatro A Barraca, o que veio a acontecer, com assinalável sucesso, em 18 e 19 de Junho.
Apresentada pela primeira vez em Portugal pela Companhia Escola de Mulheres, com encenação de Fernanda Lapa, esta é uma peça de teatro por Gaza, segundo as palavras da autora, a inglesa Caryl Churchill, que estabeleceu que qualquer teatro português pode encenar «Sete Crianças Judias» gratuitamente, desde que utilize a versão da Escola de Mulheres sem alterações, mantenha a entrada gratuita e realize uma recolha para a Medical Aid for Palestinians.
«Sete Crianças Judias» foi escrita em 2009 na sequência da Operação Chumbo Fundido, um conflito de três semanas em Gaza durante o qual pelo menos 1383 palestinos, incluindo 333 crianças, foram mortos, de acordo com a Amnistia Internacional. Treze israelitas, incluindo três civis, também morreram durante o conflito.
Em 13 de Janeiro de 2010, integrada nas iniciativas com que se assinalou o primeiro aniversário daquela agressão contra Gaza, foi feita uma leitura encenada de «Sete Crianças Judias», com direcção de Bruno Mendes, na Livraria Ler Devagar.
Na passada quinta-feira, Churchill disse que a peça era sobre «famílias que querem proteger as crianças e se perguntam o que lhes dizer sobre coisas terríveis, um pogrom, o Holocausto, finalmente o bombardeamento de Gaza».
«É crítica do tratamento dado por Israel aos Palestinos; não é um ataque a todos os Judeus, muitos dos quais são também críticos em relação à política israelita. É errado confundir Israel com todos os Judeus. Uma peça política fez inimigos políticos, que a atacam com calúnias de anti-semitismo.»
Foto: Representação de «Sete Crianças Judias» n’A Barraca, por alunos do Liceu Passos Manuel, em 27 de Março de 2013