Seminário Gaza 2009: Intervenção de Michael Kingsley-Nyinah

Sistintos convidados, colegas e amigos:
Falo-vos hoje em nome de Karen AbuZayd, Comissária-Geral da UNRWA. Karen AbuZayd teria tido o maior prazer em estar aqui presente, mas isso não lhe foi possível por já ter assumido outros compromissos, no momento em que recebeu o convite do MPPM. Karen AbuZayd pediu-me que apresentasse sinceras desculpas e os melhores votos de que esta conferência decorra com sucesso e dê resultados positivos.
Agradeço ao MPPM a organização deste seminário e o convite que dirigiu à UNRWA para se fazer representar entre os oradores. É igualmente devida uma palavra de gratidão ao público aqui reunido. Esta conferência e a vossa presença aqui são sinais reconfortantes de que os Palestinos não estão esquecidos, de que a luta palestina pela dignidade e pela justiça não está e não será esquecida. Independentemente do tempo que essa luta durar, nós, na qualidade de membros da comunidade humanitária internacional, temos de continuar a apoiar os Palestinos e os refugiados da Palestina. Tenho a esperança de que, de uma forma modesta mas significativa, esta conferência venha a contribuir para manter viva a chama do apoio às aspirações legítimas do povo palestino.
Estou consciente de que o tema essencial desta conferência é Gaza e os terríveis acontecimentos que ocorreram em Gaza, entre 27 de Dezembro de 2008 e 18 de Janeiro de 2009. Mas permitam-me que, antes de abordar esse assunto, diga algumas palavras acerca da UNRWA. Como muitos de entre vós saberão, a UNRWA é uma agência humanitária e de desenvolvimento humano dedicada a servir uma população de cerca de 4,6 milhões de refugiados, em Gaza, na Cisjordânia, na Jordânia, na Síria e no Líbano. Esta agência oferece serviços públicos essenciais em cinco domínios principais.
Temos um programa de ensino primário para quase meio milhão de crianças refugiadas. Oferecemos cuidados de saúde primários em clínicas espalhadas pela região e proporcionamos uma rede de segurança de serviços sociais tendo como alvo as camadas de refugiados mais profundamente afectadas pela pobreza e pela vulnerabilidade social. Procedemos à construção e manutenção de residências para refugiados, bem como de infra-estruturas sanitárias, de distribuição de água e outras, nos campos de refugiados e na sua proximidade. Temos igualmente um programa de microfinanciamento que apoia o desenvolvimento de pequenas oportunidades de negócio para empresários refugiados.
Para além destas funções na área do desenvolvimento humano, que constituem a sua actividade quotidiana, a UNRWA responde às situações de emergência que têm ocorrido no âmbito do conflito armado no Líbano e no território palestino ocupado. Foi esta função de resposta de emergência que esteve no centro da atenção dos meios de comunicação social durante o recente conflito em Gaza. Os funcionários da UNRWA, outras agências humanitárias e muitos Palestinos arriscaram a vida para socorrer os feridos, os doentes, os famintos e os deslocados. Demonstraram, através do seu empenho, o que há de melhor no espírito humanitário, tendo igualmente ilustrado a importância de que se revestem a atenção e a acção internacional dedicadas às questões palestinas.
E o que se passa com os próprios Palestinos e com o povo de Gaza em especial? O que podemos dizer sobre o que o recente conflito representa para a comunidade humanitária internacional, incluindo para aqueles de nós que, na Europa, temos a sorte de viver tão longe da dor e do sofrimento que, infelizmente, fazem parte integrante na experiência palestina?
O sofrimento do povo de Gaza começou muito antes do dia 27 de Dezembro de 2009. Recordemos que, em 2009, decorrem 61 anos desde que os Palestinos foram obrigados a tornar-se refugiados na terra que é o seu património. E decorrem 41 anos desde que o território palestino foi ocupado por Israel. Durante esses anos, tem-se assistido a conflitos armados recorrentes e à deterioração progressiva das condições de vida dos Palestinos.
Nos 19 meses que precederam o recente conflito, Gaza esteve sujeita a um bloqueio que permanece em vigor até hoje. Durante este período, o fluxo normal, para Gaza e de Gaza, de bens comerciais, médicos, alimentares e humanitários, sofreu graves restrições. Basta pensar nas coisas de que todos nós necessitamos para a nossa vida normal, sabendo que não foi permitida a entrada desses artigos em Gaza. Trigo para fazer pão, óleo alimentar, petróleo, peças sobresselentes para veículos, equipamento médico, combustível, fraldas, lápis, papel para livros escolares, medicamentos, pilhas, sabão – a lista é interminável. O bloqueio significou que foram impostas restrições à possibilidade de os habitantes de Gaza viajarem para fora ou para dentro do território. Estas restrições aplicaram-se a pessoas gravemente doentes, necessitando de sair de Gaza para poderem aceder a tratamento médico. Embora as estatísticas sejam controversas, é fácil imaginar que as limitações impostas pelo poder ocupante tenham provavelmente ocasionado muito sofrimento desnecessário e algumas mortes evitáveis. Os 19 meses de bloqueio tiveram consequências desastrosas para a economia de Gaza e para os seus serviços públicos. O sector privado foi dizimado pelo encerramento de fábricas e explorações agrícolas. Os níveis de desemprego rondavam os 43%, situando-se entre os mais elevados do mundo. Mais de 50% dos agregados familiares viviam abaixo do limiar de pobreza, e a sobrevivência da maioria dos Palestinos dependia da assistência humanitária. Nesta situação de indigência artificialmente imposta, o desespero e a frustração eram sentimentos comuns entre a população civil de Gaza. Verificava-se igualmente um sentimento de indignação face à comunidade internacional, por esta permitir um bloqueio que afectava toda a gente em Gaza, sem distinguir aqueles que eram militantes ou simpatizantes do regime que detinha efectivamente o poder no território.
Distintos convidados, colegas e amigos:
Esta breve descrição proporciona-nos uma visão geral da situação de Gaza, durante os 19 meses de cerco. Poderão imaginar o que significou para os Palestinos, já enfraquecidos pelo bloqueio, serem sujeitos, no meio do Inverno, a 22 dias de bombardeamentos muito intensos, exaustivos e ininterruptos por parte da artilharia, de mísseis e de outras armas pesadas, disparadas da terra, do ar e do mar.
Poderão imaginar o terror e a agonia de homens, mulheres e crianças que, sem terem qualquer ligação com os militantes, foram submetidos a formas inimagináveis de sofrimento. Poderão imaginar o desespero e a agonia de famílias incapazes de enterrar os seus mortos porque não era seguro sair de casa ou porque os cemitérios também eram bombardeados. Podemos pensar no que deve ter sido para as famílias de Gaza, privadas de alimentos, água, electricidade ou aquecimento, estremecerem de frio e medo enquanto as explosões estilhaçavam as janelas de tantas habitações. E podemos imaginar o que foi para os muitos milhares de famílias de Gaza não serem capazes de dormir durante aqueles 22 dias terríveis, devido ao frio, à fome e ao ruído ensurdecedor das explosões que abalavam os edifícios.
Sentimo-nos horrorizados, talvez mesmo revoltados, quando olhamos para os números que dão conta de cerca de 1.300 mortos, 5.300 feridos graves e um sexto dos edifícios de Gaza destruídos ou danificados. Mas, por mais chocantes que possam ser, as estatísticas desta guerra jamais darão conta da plena dimensão das suas consequências imediatas e de longo prazo para o comum dos civis de Gaza. Nem os nossos sentimentos humanitários mais sinceros e genuínos nos permitirão sentir o que sentem os Palestinos. E isto porque a sua luta, que dura há já sessenta anos, reveste um carácter singular na história recente da Humanidade. Na nova ordem mundial que emergiu da Segunda Guerra Mundial e que se centra na Carta das Nações Unidas, nenhum outro povo nem nenhuma outra entidade viu serem-lhe negados durante tanto tempo o reconhecimento, a dignidade, a justiça e um Estado que seja seu.
Uma pergunta que devemos colocar-nos é «Que podemos fazer então?». Embora não possamos pôr-nos na pele dos Palestinos, devíamos fazer tudo o que pudermos para os ajudar a satisfazerem as suas necessidades em matéria de assistência humanitária e auxílio ao desenvolvimento. Ao dirigir-se ao Conselho de Segurança em finais de Janeiro, a Comissária-Geral da UNRWA chamou a atenção do Conselho para o sofrimento muito profundo de toda a população civil de Gaza. Falou da consciência que tinha, fruto da sua própria observação, da imensa cólera que os Palestinos sentem em relação aos atacantes, por tantas vezes não terem distinguido entre objectivos militares e população civil. Mencionou igualmente o ressentimento contra a comunidade internacional por ter permitido que, primeiro o bloqueio, e depois a guerra, se tivessem prolongado por tanto tempo.
Contudo, a Comissária-Geral também informou o Conselho de Segurança de que, nos seus contactos com os civis de Gaza, pudera igualmente observar a determinação destes em vencerem o sofrimento causado pela perda e a sua crença nas possibilidades de reconstruírem as suas vidas. E exortou a comunidade internacional a aproveitar as oportunidades que se oferecem tendo em vista a recuperação e a renovação de Gaza. Esta é uma parte da resposta à questão de saber o que podemos fazer. Há muita coisa que cada um de nós pode fazer para apoiar o povo de Gaza e os Palestinos no seu conjunto, e para ajudar a atenuar o sofrimento inútil que suportam.
Actualmente, a UNRWA está a tentar obter 345 milhões de dólares, para financiar um processo de recuperação imediato destinado a 70% dos habitantes de Gaza que são refugiados. O nosso Plano de Resposta Rápida, que já está a ser executado, combina actividades no âmbito da resposta de emergência com serviços orientados para o desenvolvimento a mais longo prazo.
No âmbito deste plano, pretendemos restaurar e reforçar os serviços de ensino primário e os cuidados de saúde primários e, simultaneamente, criar programas de ajuda alimentar de emergência, de assistência monetária e de criação de emprego. Iremos proceder à reparação de habitações civis e de instalações da UNRWA que foram danificadas ou destruídas. Apoiaremos organizações humanitárias de base comunitária e proporcionaremos serviços de saúde ambiental, em ligação com as autoridades municipais. E ofereceremos apoio psico-social aos habitantes de Gaza mais traumatizados, incluindo as crianças que frequentam as nossas escolas. Numa palavra, queremos ajudar os habitantes de Gaza a viverem vidas normais.
·         A UNRWA e os refugiados da Palestina ficar-vos-ão gratos por qualquer contribuição que possam dar para os importantes custos financeiros que estes esforços envolvem. Como já tive ocasião de referir, estamos a avançar nos nossos planos e já podemos assistir à reemergência de alguns elementos de vida «normal»:
·         As escolas da UNRWA reabriram em 24 de Janeiro, registando a presença de 90%, ou seja, 190.000 crianças refugiadas ; nas escolas do governo, a percentagem de presenças é equivalente;
·         A totalidade dos 19 centros de saúde da UNRWA estão operacionais desde 20 de Janeiro ;
·         A totalidade dos 10 centros de distribuição alimentar da UNRWA estão a funcionar, permitindo o fornecimento diário de alimentos a 33.000 pessoas ;
·         Foi retomada a assistência monetária, incluindo uma verba de seis milhões de dólares, destinada a apoiar as famílias com crianças, no regresso às actividades escolares;
·         Estão em curso operações de limpeza, levadas a cabo por várias agências das Nações Unidos e de voluntariado, pelo governo e pelo programa de criação de emprego da UNRWA.
Muito embora a UNRWA e outras agências estejam a fazer os possíveis para ajudar a restabelecer uma vida normal em Gaza, esses esforços continuam a ser dificultados por vários obstáculos. O impedimento principal é a ocupação do território palestino, no âmbito da qual se mantém em vigor o bloqueio a Gaza. Não é possível transportar livremente, através das fronteiras de Gaza, os mantimentos, medicamentos, materiais de construção e ajuda humanitária. Sem fronteiras permanente e continuamente abertas, está a ser extremamente difícil realizar os nossos objectivos humanitários e de desenvolvimento humano.
Todas as actividades são afectadas, desde a distribuição de ajuda alimentar até à educação primária, passando pela reconstrução de habitações danificadas. Um outro problema tem a ver com a governação de Gaza e com a manutenção da lei e da ordem. Este aspecto tem implicações para a segurança e a protecção dos funcionários da UNRWA e de outro pessoal humanitário, bem como dos fornecimentos de ajuda. Alguns de vós tiveram talvez conhecimento de incidentes ocorridos há cerca de dez dias, quando fornecimentos destinados a serem distribuídos pelos refugiados foram confiscados e ulteriormente devolvidos.
Todas estas dificuldades ilustram o facto de que a acção humanitária não é suficiente para resolver questões complexas, cuja natureza é essencialmente política. Isto verifica-se em especial no território ocupado da Palestina, em que estão estreitamente interligadas todas as dimensões da situação intricada em que vivem os Palestinos. É necessária uma acção política corajosa a fim de aproveitar as oportunidades oferecidas pelo actual cessar-fogo em Gaza e de conseguir mudanças radicais e positivas nos seguintes domínios:
·         Manutenção do actual cessar-fogo, em moldes que permitam garantir condições de segurança para a protecção dos civis, do pessoal humanitário e das diversas actividades;
·         Abertura permanente das fronteiras de Gaza à livre circulação de pessoas e de bens de carácter humanitário e também comercial, bem como a retoma do funcionamento do sistema bancário, a fim de permitir a disponibilidade de dinheiro;
·         Reabilitação dos sectores industrial e comercial, que serão as forças motrizes dos esforços de recuperação e ajudarão a reduzir a dependência de dádivas da ajuda humanitária, o que tem sido a regra em Gaza desde há mais de 18 meses;
·         A incapacidade de proteger os civis e os ataques directos contra o pessoal e as instalações das Nações Unidas têm que ser rápida e imparcialmente investigados, e têm de ser apuradas as responsabilidades ao abrigo do direito internacional. Ao mesmo tempo, temos que explorar as possibilidades de um processo de «verdade e reconciliação», por meio do qual seja possível atingir um certo grau de apaziguamento para as profundas correntes emocionais subliminares que são inerentes ao conflito israelo-palestino.
·         A reconciliação entre Palestinos e a retoma de negociações inclusivas e globais para resolver de forma pacífica as questões subjacentes ao conflito.
·         Na ausência de um avanço urgente no âmbito destas questões, as condições de vida continuarão a deteriorar-se, aumentando a probabilidade de um regresso ao conflito.
Distintos convidados e colegas:
Estes cinco pontos – um cessar-fogo permanente, a abertura total das fronteiras de Gaza, a recuperação socio-económica, a aplicação do direito internacional e a reconciliação entre os Palestinos – constituem uma ordem de trabalhos para a acção dos intervenientes políticos. Acredito que, enquanto cidadãos de uma Europa democrática, é aí que podemos desempenhar um papel determinante.
No nosso mundo globalizado, os laços que interligam toda a humanidade vão muito além do espaço físico e são mais profundos do que nos é dado compreender. É verdade que Gaza, bem como a Cisjordânia, e igualmente os refugiados da Jordânia, da Síria e do Líbano, se encontram a milhares de quilómetros de distância de nós. No entanto, essa distância geográfica é menos significativa do que o espaço que partilhamos enquanto membros da comunidade internacional, com um esteio comum em matéria de direitos humanos e de dignidade humana para todos. Os problemas relativos aos Palestinos e aos refugiados palestinos são também nossos – tanto vossos como meus – porque dizem respeito a questões que constituíram as bases sobre as quais se construíram a Carta das Nações Unidas e os Estados da Europa.
Quando, como acontece no território palestino ocupado, os direitos humanos de um povo inteiro são violados, tão flagrantemente e durante tanto tempo, e quando o direito internacional e o direito humanitário internacional são tão regularmente desconsiderados, esses conceitos, princípios e leis, em que se baseiam as civilizações, são gradualmente desgastados e poderão, em última análise, ficar ameaçados. Não podemos e não devemos fingir que não vemos. Não podemos e não devemos calar-nos.
A responsabilidade de restabelecer a segurança dos Palestinos e dos refugiados palestinos incumbe aos Estados que são os principais intervenientes no nosso sistema multilateral de governação global. Exorto-vos a falar com os representantes do vosso Estado e a pressioná-los no sentido de assegurarem uma acção internacional direccionada para os cinco domínios a que fiz referência há pouco. É necessário pressioná-los, em todas as questões relativas aos Palestinos, a assumirem posições de princípio, baseadas na legalidade internacional. E insistir para que os vossos representantes reconheçam que a devolução da dignidade e da justiça aos Palestinos contribuirá significativamente para a segurança de Israel e também para a estabilidade e a prosperidade no Médio Oriente e no mundo.
[Tradução: Graça Macedo]
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